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O periquito cara-suja está de volta à Reserva Natural Serra das Almas!

Essa esperada notícia já pode ser celebrada desde o dia 20 de junho de 2024, quando 19 exemplares selvagens dessa espécie ameaçada de extinção foram levados para lá, partindo da Serra de Baturité. Mas para que o significado dessa operação seja bem compreendido, é necessário contar uma história que envolve outra ave. 2024 é o ano do centenário de um pássaro que leva o Ceará em seu nome: o vira-folhas-cearense (Sclerurus cearensis). A pessoa responsável por tal nomeação foi a Doutora Emilie Snethlage, uma alemã que descobriu esse pássaro para a ciência a partir da Serra Grande — o imenso planalto florestado onde o Ceará faz divisa com o Piauí. Durante essa mesma expedição de descoberta, a doutora também comprovou a existência dos últimos exemplares do periquito cara-suja procedentes dali.

Para sobreviver no Ceará, essas duas aves ameaçadas de extinção precisam de florestas secas e úmidas que não ocorrem nas planícies. Além disso, o cara-suja ainda por cima foi quase completamente exterminado da face da Terra pelo tráfico ilegal de animais silvestre, ao contrário do vira-folhas cearense, que depende apenas de um ambiente íntegro. A Serra Grande perdeu o cara-suja há muito tempo, contudo, o vira-folhas-cearense fornece pistas de até onde esse periquito pode ter ocorrido. Esse pássaro ocorre desde a Reserva Natural Serra das Almas (RNSA), ocupando matas da Serra Grande por até 200km em direção ao norte. Pertencendo e sendo gerida pela Associação Caatinga, a RNSA tem quase seis mil hectares que vêm sendo regenerados não só quanto à flora, mas também quanto à fauna que têm voltado ao local pelos próprios meios, tendo como exemplo a paca, a guariba e o tatu-bola. Outros animais, contudo, precisam de uma ajuda da humanidade para poder regressar: é o caso do cara-suja.

A missão que trouxe os 19 exemplares selvagens faz parte da Aquasis, Organização da Sociedade Civil fundada há 30 anos e que desde 2005 atua pela conservação deste periquito através do Projeto Cara-suja, coordenado pelo biólogo Fábio Nunes. Essa é a segunda vez que uma operação assim é realizada com a espécie, pois a primeira foi cumprida com sucesso na Serra da Aratanha, onde inicialmente 33 exemplares foram translocados em três levas ao longo de um ano, com reprodução em liberdade já ao final desse período.

Procedimento similar está previsto para o Parque Nacional de Ubajara, que também faz parte da Serra Grande, 145 km ao norte da RNSA. Com o sucesso destas iniciativas, espera-se que essas populações cresçam até se encontrarem em pontos intermediários, como na região de Ipu, onde a ave foi comprovada pela última vez no começo do século passado. Para tanto, será necessário não apenas proteger as poucas matas que sobraram, mas promover reflorestamentos e criação de novas Unidades de Conservação, pois fora delas, a situação da Serra Grande é sofrível na perspectiva ambiental.

O significado desse regresso também se estende para além do cara-suja, que servirá como um tipo de abre-alas para outras espécies que atualmente ainda fazem falta na RNSA, mas que poderão voltar para lá com o sucesso da empreitada com os periquitos trazidos da Serra de Baturité. Entre estes animais, destacam-se outras aves da família do cara-suja, os chamados psitacídeos, como jandaias, papagaios, maracanãs e as araras. Cada espécie trazida de volta requer muita cautela, mas uma vez reestabelecidas, voltarão a prestar serviços ambientais que melhorarão inclusive a saúde da floresta.

A doutora alemã teve um sobrinho de quem ela se orgulhava por também estudar aves, tendo andado nas imediações da RNSA em 1925. Seu nome era Heinrich Snethlage e esteve onde hoje são os territórios dos municípios de Crateús, Ipaporanga e Poranga. Naquele tempo, destacou uma localidade de nome Araras, no mesmo tipo de ambiente da RNSA, distando menos de 20km ao norte dela. Em suas pesquisas, também redescobriu o bico-virado-da-caatinga, uma ave emblemática do bioma que já não era vista há vinte anos. As araras já não são mais vistas nas caatingas do Ceará há muito tempo, mas na divisa com o Piauí, existe o lugar mais promissor onde há a esperança de que isso possa ser revertido.

Texto: Weber Girão
Foto de capa e destaque: Fábio Nunes