O desmatamento ainda é um dos maiores desafios para a conservação da Caatinga. Segundo o Relatório Anual de Desmatamento no Brasil (RAD 2024), elaborado pelo MapBiomas, apenas em 2024 foram desmatados 174 mil hectares de vegetação nativa no bioma (o equivalente a quase 250 mil campos de futebol). O estudo apresenta uma análise aprofundada sobre o desmatamento em todos os biomas brasileiros. Acesse o relatório completo aqui.
Para aprofundar o tema, conversamos com Diego Costa, geógrafo integrante da equipe Caatinga do MapBiomas, iniciativa que monitora o desmatamento no semiárido brasileiro.
Durante este Papo Caatingueiro, Diego compartilha sua trajetória, explica como funciona o Sistema de Alerta de Desmatamento da Caatinga (SAD Caatinga), analisa os impactos ambientais e sociais do desmatamento e aponta caminhos para fortalecer a conservação do único bioma exclusivamente brasileiro.

Diego Costa, geógrafo integrante da equipe Caatinga do MapBiomas, iniciativa que monitora o desmatamento no semiárido brasileiro.
Associação Caatinga: Para começar, Diego, conta pra gente: qual é a sua formação e como você chegou até o MapBiomas?
Diego Costa: Minha trajetória no MapBiomas começou em 2015, ainda na graduação, quando participei da construção da primeira coleção como bolsista de iniciação científica. Desde então, sigo colaborando com a iniciativa, mais especificamente na equipe do MapBiomas Caatinga, sob coordenação do Professor Dr. Washington Rocha. É um trabalho que acompanho com muito orgulho desde o início e que tem sido fundamental na minha formação acadêmica e profissional.
Além disso, sou um dos fundadores da Geodatin, uma startup que nasceu dentro do próprio MapBiomas com o objetivo de criar softwares inteligentes, muitos deles voltados para a conservação ambiental. A empresa tem se consolidado no desenvolvimento de ferramentas que apoiam a fiscalização, o monitoramento e a gestão territorial, com um olhar atento e direcionado para os desafios ambientais do Nordeste brasileiro.
Associação Caatinga: O MapBiomas tem ajudado o Brasil a entender a dinâmica do desmatamento. Como funciona a metodologia usada por vocês para identificar e mensurar com precisão as áreas desmatadas?
Diego Costa: Essa é uma pergunta muito importante e interessante! Existem vários sistemas de alerta de desmatamento no mundo, mas a maioria deles foi desenvolvida para monitorar florestas úmidas, como a Amazônia. Biomas secos (como a Caatinga) ficaram, por muito tempo, fora do radar. Percebendo essa lacuna, nosso time iniciou, em 2019/2020, o desenvolvimento de um Sistema de Alertas de Desmatamento específico para a Caatinga.
O sistema tem algumas características marcantes: os alertas são gerados mensalmente. Usamos processamento em nuvem, o que nos permite analisar todas as imagens disponíveis para o bioma; aplicamos ajustes em séries temporais para reduzir os efeitos da sazonalidade; e também utilizamos algoritmos de aprendizado de máquina para melhorar a precisão dos resultados. Para quem quiser mais detalhes, publicamos um artigo sobre a metodologia: All Deforestation Matters: Deforestation Alert System for the Caatinga Biome in South America’s Tropical Dry Forest — disponível aqui.
Associação Caatinga: Em 2024, observamos queda no desmatamento em todos os biomas, inclusive na Caatinga. Na sua visão, o que contribuiu para essa redução no semiárido?
Diego Costa: Antes de estruturar a resposta de fato, é preciso ressaltar que, nós como MapBiomas, não focamos tanto em questões de causalidade para que não tenhamos vieses políticos, de tendências ou qualquer coisa do tipo. O que fazemos é gerar os dados e garantir que eles tenham qualidade para que pesquisadores, gestores e tomadores de decisão possam analisá-los e interpretá-los. Inclusive incentivamos que a comunidade (científica, acadêmica e civil) analise estes dados e entreguem publicações científicas, políticas ambientais e outros, sempre com foco na redução do desmatamento ilegal.
No caso da Caatinga, em 2024 identificamos uma queda de aproximadamente 1.000 eventos de desmatamento (5,3%) e cerca de 27 mil hectares a menos desmatados (13,4%) em comparação a 2023. Embora o número chame atenção, ainda é cedo para afirmar que há uma tendência consistente de queda.
A série histórica ainda é curta e variações anuais são esperadas. É necessário acompanhar por mais tempo para confirmar qualquer mudança estrutural. Inclusive, nos primeiros meses de 2025, já identificamos um número expressivo de novos alertas. Ou seja, esse possível decréscimo ainda precisa ser observado com cautela, e com base em dados mais robustos ao longo dos próximos ciclos.
Associação Caatinga: Como podemos manter essa tendência de queda do desmatamento nos próximos anos, especialmente na Caatinga?
Diego Costa: Sempre que observamos avanços na área ambiental, dois elementos estão presentes: uma sociedade civil engajada e políticas públicas bem estruturadas. No caso do desmatamento, isso é ainda mais evidente, porque é um fenômeno que conseguimos medir com precisão e acompanhar ao longo do tempo.
Ele é, talvez, um dos indicadores mais diretos e sensíveis para avaliar a efetividade das políticas ambientais. No caso da Caatinga, manter (ou ampliar) a redução no desmatamento depende de continuidade e aprimoramento das ações de fiscalização, regularização fundiária, incentivo à conservação e, claro, do engajamento de quem vive e produz na região.
”No caso da Caatinga, manter (ou ampliar) a redução no desmatamento depende de continuidade e aprimoramento das ações de fiscalização, regularização fundiária, incentivo à conservação e, claro, do engajamento de quem vive e produz na região.
Associação Caatinga: Apesar da redução, os números da Caatinga ainda preocupam. Quais são os impactos do desmatamento acumulado nos últimos anos para o bioma e para as populações que vivem nele?
Diego Costa: A Caatinga está inteiramente inserida no semiárido brasileiro, o que já traz, do ponto de vista bioclimático, condições naturais mais delicadas para o equilíbrio ambiental. Isso torna o bioma especialmente vulnerável a processos de degradação, como a desertificação. Além disso, é uma das regiões com maiores índices de vulnerabilidade social do país, o que significa que os impactos ambientais recaem com ainda mais força sobre populações que já enfrentam fragilidades econômicas, acesso limitado a recursos e poucas alternativas de desenvolvimento sustentável.
O desmatamento acumulado ao longo dos anos, somado ao avanço de áreas improdutivas, intensifica a pressão sobre os ecossistemas e acelera os processos de degradação ambiental e mudanças climáticas locais.
Associação Caatinga: Um dado que chama atenção no estudo do MapBiomas é que o maior alerta de desmatamento do país, com mais de 13 mil hectares, ocorreu justamente na Caatinga. O que esse dado representa e como ele repercute dentro da equipe de vocês?
Diego Costa: Apesar de termos recebido esse dado com surpresa, ele não foi totalmente inesperado. A fronteira agrícola do MATOPIBA (região que se estende por territórios de quatro estados do Brasil: Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) tem avançado cada vez mais sobre o bioma Caatinga, e já vínhamos monitorando sinais dessa pressão crescente. Esse desmatamento de mais de 13 mil hectares, mesmo tendo sido autorizado, ocorre em uma região extremamente sensível, muito próxima de duas Unidades de Conservação importantes: a Serra da Capivara e a Serra das Confusões.
Além disso, parte da área está inserida no domínio da Lei da Mata Atlântica, o que exige atenção redobrada. Para a nossa equipe, esse alerta acendeu um sinal importante. Esperamos que os processos de compensação ambiental envolvidos sejam realmente à altura do impacto gerado. E um dado curioso (e preocupante) é que, pela extensão da autorização concedida, existe a possibilidade de outro grande evento semelhante aparecer novamente nos dados de 2025, na mesma região.
Associação Caatinga: Quase todos os municípios da Caatinga registraram ao menos um evento de desmatamento. O que isso revela sobre a pressão humana sobre o bioma?
Diego Costa: Trabalhos científicos anteriores já indicavam que o desmatamento na Caatinga ocorre de forma bastante pulverizada, com pequenos eventos espalhados ao longo do território, diferentemente do que observamos em biomas como a Amazônia ou o Cerrado, onde o desmatamento tende a se concentrar em grandes áreas contínuas. Com o SAD Caatinga (Sistema de Alerta de Desmatamento), conseguimos confirmar isso com mais precisão. Praticamente todos os municípios do bioma registraram ao menos um evento de desmatamento, e a média dos alertas é de cerca de 10 hectares por evento. Ou seja, o desmatamento se distribui de forma difusa, alcançando quase todo o bioma.
Esse padrão revela um desafio muito particular: não estamos lidando com grandes frentes de expansão agrícola (com exceções na fronteira com o MATOPIBA e em projetos irrigados em alguns estados), mas sim com uma multiplicidade de pequenos desmatamentos pulverizados no território. Isso torna o controle e a fiscalização muito mais complexos, já que não se concentram em grandes propriedades ou regiões específicas. Além disso, esse tipo de desmatamento, muitas vezes vinculado a atividades locais de subsistência ou de uso extensivo da terra, exige um olhar mais cuidadoso das políticas públicas, que precisam considerar as realidades socioeconômicas da região, em vez de aplicar soluções genéricas importadas de outros contextos.
”Trabalhos científicos anteriores já indicavam que o desmatamento na Caatinga ocorre de forma bastante pulverizada, com pequenos eventos espalhados ao longo do território. Com o Sistema de Alerta de Desmatamento da Caatinga, conseguimos confirmar isso com mais precisão.
Associação Caatinga: Um ponto especialmente preocupante é o avanço do desmatamento nas zonas de desertificação. Por que esse processo é tão crítico?
Diego Costa: Na minha visão, o mais crítico no avanço da desertificação é quando começamos a atingir pontos de não retorno. Isso significa que determinadas áreas degradadas deixam de ter capacidade de regeneração, seja do ponto de vista ecológico, seja produtivo, porque o nível de degradação é tão profundo que sua recuperação levaria décadas, quando possível. Essas áreas se tornam praticamente improdutivas e passam a acumular características ambientais extremamente adversas: solo exposto, baixa retenção hídrica, perda de biodiversidade e microclima alterado.
Associação Caatinga: Como podemos consolidar essa tendência de queda no desmatamento na Caatinga?
Diego Costa: A consolidação de uma tendência de queda no desmatamento na Caatinga e a proteção de áreas mais sensíveis (como núcleos de desertificação e Unidades de Conservação) exigem a formulação e implementação de políticas públicas de conservação de longo prazo. Isso inclui a criação de novas Unidades de Conservação, especialmente em regiões ecologicamente frágeis ou sub-representadas no sistema, e o fortalecimento das RPPNs, que representam uma estratégia eficaz de proteção em áreas privadas, com grande potencial no contexto do semiárido.
Além disso, é fundamental reforçar a aplicação da legislação ambiental, com fiscalização ativa e penalidades eficazes (com características próprias, que devem ser discutidas com a sociedade), e investir em educação ambiental e na valorização dos ecossistemas locais, promovendo o engajamento das próprias comunidades na proteção do território.
Também é necessário fortalecer a capacidade institucional dos órgãos ambientais, garantir orçamento contínuo e integrar ferramentas de monitoramento, como o SAD Caatinga, ao planejamento ambiental. Por fim, virar o jogo passa por reconhecer o valor estratégico da Caatinga, colocando o bioma no centro das políticas nacionais de conservação, como merece. Afinal, a Caatinga é o bioma que tem a cara do Brasil (como estava no banner do site institucional da Associação Caatinga).
”Por fim, virar o jogo passa por reconhecer o valor estratégico da Caatinga, colocando o bioma no centro das políticas nacionais de conservação, como merece. Afinal, a Caatinga é o bioma que tem a cara do Brasil.
Associação Caatinga: Para finalizar, há alguma mensagem ou informação importante que você gostaria de compartilhar com o público que irá ler esta entrevista sobre o desmatamento na Caatinga?
Diego Costa: Considero fundamental destacar o avanço dos projetos de energias renováveis como um novo e expressivo vetor de desmatamento na Caatinga. Em praticamente todos os estados do Nordeste, esses empreendimentos (energia solar e eólica) têm sido implantados, majoritariamente, em áreas de vegetação nativa. Esse cenário nos leva a uma reflexão sobre a real sustentabilidade do modelo atual de expansão das energias renováveis.
Temos no Nordeste extensas áreas já degradadas ou com baixo potencial produtivo, que apresentam alta incidência solar e poderiam ser mais adequadas para esse tipo de ocupação. Então, por que avançar justamente sobre os remanescentes de vegetação nativa?


