As mudanças climáticas são, sem dúvida, um dos problemas que mais nos afetam, colocando em xeque os destinos de espécies e de biomas. Para lidar com problema de tamanha dimensão, não bastam as respostas das ciência biológicas e climáticas. É necessário expandir o olhar também para o ponto de vista das ciências humanas. Pensando nessa questão, convidamos o antropólogo Gabriel Rodrigues Lopes para um papo sobre as mudanças climáticas e seus impactos na Caatinga.
Nascido no distrito de Pilar, em Jaguarari (Bahia), a certa altura da juventude Gabriel decidiu partir para Sergipe com o intuito de cursar o ensino superior. Com o curso concluído, percebeu que havia fronteiras muito mais amplas a serem conhecidas. Assim, foi para o México e chegou a Buenos Aires. Enquanto percorria “a América Latina oficial”, também saia dela, isto é, da acepção eurocêntrica dessa área continental, para “viajar através dos arquipélagos existenciais que os mundos indígenas me convidavam”.
Foi movido por esse percurso que Lopes mergulhou no universo imaginário e experiencial dos nativos do centro-norte da Bahia, dessa vez como antropólogo. Sua região estende-se por Uauá, que é próxima do que um dia foi Canudos, o lugar da guerra que se tornou matéria de Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, um dos principais livros da literatura brasileira. Os Sertões moldaram o olhar de fora para dentro do sertão e contribuíram para a cristalização da figura do sertanejo. Porém, os habitantes do centro-norte baiano ouvidos por Lopes recusam-se à essa identificação e não se reconhecem como sertanejos, mas sim como catingueiros. E isso faz toda diferença: eles reivindicam o “nós” para dizerem quem são, e não os outros que devem dizê-lo.
Nesse universo, Lopes ouviu os catingueiros sobre a atual era que eles chamam de “os-tempos-mudaram”. Mas foi muito além: se as mudanças climáticas colocam em xeque o nosso destino, o mergulho no imaginário, nas figuras do pensamento, nas imagens simbólicas dos nativos da Caatinga nos ajuda a compreender e buscar outros sentidos e formas de viver no mundo que nos cerca.
Mesmo à prova das secas que historicamente os acometem e os maltratam, como os catingueiros respondem às mudanças climáticas? Neste “papo caatingueiro”, Gabriel Lopes responde a essa questão. Seu olhar é fruto de um percurso de vida de quem conhece bem os chãos, as temperaturas, os sons e os cheiros da Caatinga. O nosso entrevistado é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), possui mestrado em Ciências Sociais do Desenvolvimento pela Universidad Nacional de San Martín (UNSAM – Argentina) e doutorado em Antropologia Social pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Atualmente, ele realiza pós-doutorado na Universidade Federal de Sergipe.

Gabriel Rodrigues Lopes é antropólogo e, atualmente, realiza pós-doutorado pela Universidade Federal de Sergipe
Associação Caatinga | Na perspectiva antropológica, como a Caatinga é impactada pelas mudanças climáticas?
Gabriel Rodrigues Lopes | Posso deduzir que boa parte dos impactos observados na região na qual venho fazendo pesquisas desde 2015 podem ser encontrados, de algum modo, em outros lugares. Nessa região da caatinga há uma intensa atividade de pastoreio de gado, são comunidades que se autodeclararam de “fundo de pasto”, uma figura que nos últimos anos passou a ser reivindicada como forma de vida, o que implica a manutenção da caatinga em pé, dado que centenas de animais vivem soltos por lá e, obviamente, se alimentam de plantas nativas. Para boa parte das pessoas com quem convivi, as mudanças climáticas são ao mesmo tempo um diagnóstico, algo observável (como o desajuste dos animais sentinelas que antes anunciavam a temporada da chuva ou da seca e como está cada vez mais difícil a vida por lá dada a intensidade da seca e do calor), e como um efeito do abandono de um modo de viver ancestral. Num artigo que publiquei em 2021 [“O homem quis ser o Herói…”], o próprio título resume essa história, título que é uma frase muito comum e que me foi narrada pelo Zé, um grande raizeiro, “o homem quis ser o Herói, tá aí os tempos mudados”. Ao abandonar um modo de vida em equilíbrio com o entorno, esse Herói, que outorga para si o direito a ser mais humano que os demais, tornou-se o responsável pelo desequilibro do planeta. Essa nova “era” tornou-se assim uma agência que eles chamam de “os-tempos-mudaram”. Ou seja, a mesma individualidade que trouxe a mudança climática, que se observa tanto no desajuste das chuvas e seca, como nos animais sentinelas, continua a existir no modo de pensar de diversas pessoas que começam a cercar suas propriedades para resguardar o pasto para alimentar o gado, num círculo vicioso, reduzindo assim cada vez mais a área de fundo de pasto para os pequenos produtores sem poder aquisitivo para comprar terras.
Para o pensamento-prática dos catingueiros, como a alteração climática foi causada por esse Herói, que não é um só, evidentemente, mas se refere a um modo de pensamento, de existência e de produção, ela pode ter sua duração encurtada, sempre e quando tal herói deixe de ser um alienígena em seu próprio mundo, como diz o Eduardo Viveiros de Castro, e pare de devorar o mundo que lhe dá vida. Ou seja, as coisas não estão dadas, encerradas, pois retomar as sabedorias e a palavra dos mais velhos, como dizem, dos primeiros, pode alterar um mundo alterado; não será o mesmo, evidentemente, mas será um menos inviável à vida, menos infernal. O perigo como dizem é o Um, algo análogo ao que dizem os Guarani, a homogeneidade de pensamento que o Herói proclama e por isso é tão associado à besta-fera, aquela figura vinculada tanto a uma força e coragem descomunal que é possível invocar (vou virar na besta e pegar aquele boi), como ao fim da própria vida, pois quando chegada a hora do fim, ela carregará consigo seus aliados. A besta, o herói, o deserto, a mono-cultura e a mudança climática estão todos entrelaçados no pensamento caatingueiro, pois são contra a diferença que é a base da própria vida. Uma curandeira Gisélia resumiu isso muito bem: “saberemos que chegou o fim das eras e que a besta está aqui, quando todo mundo tiver um chip debaixo da pele”. Deserto existencial, deserto de mundo, o Mesmo como mundo, isso é um horror. Temos que lutar contra os heróis, os messias, as bestas salvadoras em favor da caatinga, da diferença que ela guarda, expressa, preserva e ensina.
AC | A propósito, você realizou uma interessante pesquisa sobre a prática de “rastejar” na Caatinga da Bahia. Poderia falar sobre essa prática e os seus significados?
GRL | Então, rastejar é um modo de relação com a caatinga e com os seres diversos que a habitam, sejam estes animais, pessoas, água, futuros imediatos ou seres extra-humanos como espíritos, lobisomem, Caipora. Cada um a seu modo deixa rastros, evidências, indícios de sua presença e algumas pessoas tem uma sensibilidade, uma arte para rasteja-las. Têm os que identificam a espécie de um animal por sua pisada na terra, e se há intimidade, se há uma relação longa e contínua entre eles, como acontece com bodes, cabras, ovelhas, gado e cavalos, alguns sabem até dizer o sexo do animal e se ele ia carregando alguém e se esse alguém era gordo, magro, mulher, homem, e se tinha pressa ou não. Alguns estudiosos dizem que Lampião e seu bando abandonaram o uso do cavalo por conta dos espinhos e da mata fechada na caatinga, mas não foi apenas por isso, claro que percorrer a caatinga pelas rodagens e veredas seria como colocar um alvo nas costas. Mas sabemos que qualquer vaqueiro que deseje ser reconhecido como tal gosta justamente é de caatinga bruta, tanto que é muito sem graça para eles correr um boi na capoeira, no tabuleiro, daí que lhes causa graça quando nas novelas dizem que os ‘sertanejos’ do pantanal são vaqueiros. Lampião deixou o cavalo e decidiu andar a pé por conta dos rastros pois estes podem ser rastejados até em cima de laje. Ouvi histórias de rastejadores que reconheceram a pisada de seu cavalo que havia desaparecido há anos no exato momento em que a viram longe de sua casa, ‘ele tá aqui’, disse o homem, e saiu perguntando pela zona até encontrá-lo; imagine os rastros deixados por 10, 20 ou 50 cavalos na mata fechada, um rastejador qualquer saberia onde estava o bando.
Além disso, tem gente que rasteja água subterrânea porque escuta seu som, ao ficar tonto ou quase desmaiar, como que se afogando, como se estivessem sendo sacolejadas por uma correnteza e aí dizem: ‘tem muita água aqui, quase me afogo, pode furar um poço’; ao ver luzes, como o reflexo dela no sol, ou porque sente um rebuliço no estômago; porque sente o coração palpitar; tem gente que advinha o futuro, se vai ter acidente no dia, ou se estão falando dessa pessoa em algum lugar; tem gente que rasteja coisas ou animais perdidos no mato à distância e dizem onde elas estão, estes são os maiores rastejadores de todos, rastejam de longe, nem no mato vão. Poucos sabem fazer isso, pelo que sei, lá na caatinga só o falecido Maneca da França. Enfim, rastejar é um conceito para falar sobre o ato em si, para pensar sobre os modos de existir na caatinga e, aventuro dizer que é um pensamento não moderno para pensar coisas modernas e dizer coisas ainda não ditas. Sobre isso ainda irei me dedicar, é uma de minhas questões de estudo, talvez a mais complexa e que me levará um tempo para elucidá-la, sem a ambição de querer explicá-la ou reduzi-la a uma lei, uma verdade, obviamente. É apenas um outro modo de pôr atenção em algo muito importante para as pessoas e justamente por isso, porque os rastejadores não somos nós, este outro modo de estar no mundo tem a capacidade de tornar a Vida mesma mais interessante, rica, complexa, esse é a riqueza e beleza da antropologia.
AC | O que se pode aprender com essa prática à contrapelo do antropocentrismo que define e orienta a maior parte das sociedades humanas desde o período moderno?
GRL | No artigo mencionado na pergunta anterior [“Lo que los vedores rastejam en la caatinga de Bahia”], publicado em 2023 numa revista na Espanha, sobre os veeiros ou vedores que rastejam água no subsolo, eu proponho que esse conceito não é antroponarcísico, ou seja, que rastejar animais, coisas e seres desconhecidos seria um outro modo para falar do humano, uma desculpa sofisticada para falar de si mesmo. Ao contrário, se há diferentes habilidades próprias a cada vedor isso pode não ser apenas uma referência a um mosaico riquíssimo da capacidade humana de se relacionar com a água, mas a existência de diversas formas de rastejar (com varinhas, desmaiando, ouvindo, vendo, sonhando etc.) pode estar indicando o modo de rastejar da própria água que ressoando, afetando o corpo humano, produz diferentes modos de rastejar. É como se o primeiro modo de pensar o rastejar, que é totalmente válido, fosse desviado para outro lugar, para outra forma de pensá-lo, assim como a própria água desvia seu caminho no subsolo quando as pessoas que fazem um poço negam o acesso a água aos demais e aos animais. Tudo isso é bem interessante posto que reorienta o lugar privilegiado que a cultura ocupa no dualismo moderno natureza-cultura, onde o humano radicalmente separado das forças da natureza é quem vai decifrar, decodificar, classificar essa natureza incognoscível, inapreensível, bruta, braba e perigosa para, por fim, ter controle sobre ela… aquela coisa do positivismo que para entender o mundo eu preciso transformar tudo em objeto; rastejar está mais para um xamanismo que para esse positivismo ou relativismo, que diria que o rastejar da água é uma totalidade intraduzível, incomparável. Assim como o xamanismo, o rastejar reconhece, ao mesmo tempo, que agência, intencionalidade e subjetividade não são atributos exclusivamente humanos e que ali não há ponto de vista do todo, senão uma pragmática situada que engendra outro modo de pensar, sendo então uma tecnologia de tradução, de contaminação recíproca entre mundos. Rastejar é estar aberto a ser afetado por forças ainda não rastreáveis; acho que rastejar começa quando o rastrear termina, pois quando a água invade o sonho de uma pessoa mostrando onde ela está, isso não é mais rastrear, abrir o baú de conhecimentos que cada uma tem para decifrar, seguir e encontrar algo. Na manhã seguinte desse sonho, o rastejador segue um outro modo de habitar, de estar no mundo, de um sentir por ele ainda desconhecido, ele segue o ‘tino’ como dizem, o entusiasmo de seu corpo, como disse um filósofo, o Souriau.
AC | Nessa pesquisa, você conseguiu perceber como os catingueiros da Bahia tem lidado com as mudanças climáticas?
GRL | Está bem difícil aprender a conviver com isso no geral, pois normalmente nos adaptamos às constâncias, ao cotidiano e não podemos supor que se na cidade não há estratégias compartilhadas para habitá-la com essa nova onda de calor, o mesmo se passa na Caatinga. Claro que sabem que os tempos mudaram, mas não há como saber a intensidade imediata disso, não se vive no futuro e menos na Caatinga, onde a experiência, a pragmática tem um valor central. Tem gente que enfia um pé dentro de um formigueiro para saber o que acontece, imagine como é sério por lá essa abertura à experiência. Há diversos relatos míticos naquele artigo [“O homem quis ser o Herói…”], que citei anteriormente, sobre as diversas fases dos “tempos-mudaram” (da chegada do pé de borracha na Caatinga, o carro, passando pela conversão da Caatinga em tabuleiro, logo a esterilidade de todo ser que possa gerar descendência, a desmemória do que seja uma vaca, tempestades de fogo que tudo devoram etc.), mas mesmo sabendo-o e comprovando sua atualização na prática, isto é, vendo que o que os antigos disseram está se cumprindo e provavelmente seguirá assim, porque o mito reúne passado e porvir, é muito difícil atuar no hoje diante de algo que ainda não é o cotidiano. Ninguém quer viver, antecipadamente, nas ruinas que virão, só se adapta um modo de relação com o entorno vivenciando uma experiência que se comprove valer à pena, por diferentes motivos. Dou um exemplo breve.
Onde residem meus familiares e amigos, muitos viveram severas secas ao longo do século XX, mas desde a forte seca de 2011 a 2018, a chuva se normalizou, foram quatro anos em que se podia plantar e deixar o gado a ermo na Caatinga e meses depois contratar um vaqueiro para busca-lo, seja para vender, aplicar vacina, marcar os bezerros etc. e todos estavam gordos. No entanto, desde fevereiro de 2023 as chuvas escassearam novamente e muitos animais morreram ao longo do ano, muitas pessoas estão vivendo da água que chega no carro-pipa, os que têm um pouco mais de recursos compraram feno, palma dos vizinhos, regaram o pouco do capim-buffel (capim-búfalo, como se conhece) que tinham; quem tem pouco alimenta seus animais com mandacaru, xique-xique e recolhem com varas os enxercos que nascem em algumas árvores e terminam vendendo a preço de banana sua única poupança a quem tem grandes cercados de terra para criar gado. Podemos dizer com isso que nada aprenderam das secas anteriores? Claro que não, se assim fosse como saberiam que enxerco engorda boi, além de ser bom para a próstata?
O ponto aqui é outro. Na seca de 2023 só morreram os animais que não tinham Caatinga nativa para pastar por conta das cercas; nas grandes extensões de terra, mesmo sem capim plantado o gado sobreviveu, não ganhou muitas arrobas, mas também não as perderam de modo considerável. A grande adaptação à mudança climática, para o modo de vida do fundo de pasto, é frear a ideologia da cerca, atrelada à intervenção do poder público que garanta terra para pastoreio e acesso a recursos hídricos e financeiros. Agora que choveu bem por lá na primeira semana de janeiro e pelo sofrimento vivido nesses meses, muitos estão atentos ao fato de que esta pode ter sido a primeira e a última chuva do ano. Não se adapta à mudança climática porque os modos de conhecimentos (nativos e modernos) incitam a fazê-lo em seus discursos – estes atuam como princípio de precaução para não acelerar ainda mais o processo –; é necessário que essas cosmo-práticas demonstrem no presente, pela experiência, como é eficaz um projeto de adaptação em que estejam aliados ambos os modos de pensamento. Seguramente há diversas experiências na caatinga que poderiam ser replicadas em e adaptadas para outros lugares. O caso desse fazendeiro é didático: não sei quantas léguas de terra de fora a fora, centenas de animais continuam vivos e fortes, do outro lado da cerca, em pequenos ou grandes cercados, muitos animais morrendo a torto e a direito. Uma severa fiscalização da grilagem, do comércio ilegal de terras, a proibição de atividades de monocultivos no fundo de pasto e sua posterior restituição para uso comum já seriam passos importantes para a convivência com o desconhecido clima, em paralelo ao desenho de políticas públicas específicas.
Mas sabemos que há um forte e histórico racismo ambiental que desdenha e ignora os impactos da desertificação da Caatinga, pois do mesmo modo que não se pode ser julgado por um crime realizado contra pessoas que, a priori, não são “gente”, tantos genocídios realizados a partir dessa premissa, que importa se a Caatinga se desertifique, ela não foi sempre um “deserto” mesmo? Os caatingueiros sabem disto, porque conhecem os saberes dos mais velhos que diziam que um dia a “Caatinga vai virar nordeste”, que esse imaginário urbano-colonial pode se profetizar, porque imaginar já é realizar, por isso tantos rechaçam o modo de vida e de pensar do “povo da rua” e, principalmente, tornar-se um deles. Isto já é, em si mesmo, um modo de adaptação à mudança climática, não se tornar um Herói.
AC | Para finalizar, gostaria que falasse um pouco da sua relação afetiva com a Caatinga e sobre a importância da conservação desse bioma do ponto de vista cultural.
GRL | A caatinga é sábia, ao andar por ela se aprende muito sobre como transitar a vida. Assim como ela que se guarda, recolhe suas folhas e se abastece com suas raízes profundas diante de uma alteração das condições externas, conjunturais, torna-se menos doloroso viver as adversidades e situações comuns à vida das quais não temos controle (e quase todas assim o são), quando nos agarramos à evidência de que assim como a seca chegou, um dia ela vai embora, claro que como diversas situações na vida, pode ser duro e difícil. Não estou falando de resiliência, adaptação, resignação, essas palavras chatas de moda dos livros de auto-ajuda, mas de uma sabedoria ancestral que nos recorda que somos co-autores da vida, que nós vivemos em comunhão e em afetação recíproca com outros seres, quais sejam eles; vivemos com a vida, com a terra, com a caatinga, não para ela (algo religioso) e nem sobre ela (algo depredatório), em conjunto, por isso do mesmo modo que mexo com ela, e é possível mensurar o impacto de minha ação, ela mexe comigo, e posso observar as evidências dessa força, dessa agência.
Claro que é preciso todo o esforço para conservar esse bioma com o povo dentro dele, não essa conservação agropop que desconhece a interdependência entre caatinga e caatingueiros para manter a própria floresta em pé. Poderíamos argumentar que a importância de conservar esse bioma se deve a resguardar todo um vasto conhecimento nativo sobre o poder de cura das plantas, que há muito tempo as empresas farmacêuticas já levam muito a sério, para proteger modos de vida entrelaçados com o de inúmeros animais, no qual se guardam saberes sobre a ecologia e etologia desses animais, sobre seus costumes, práticas, modos de vida, relações etc., porque eles colocam questões relevantes às ciências sociais e à filosofia, enfim, motivos têm a rojão, como se diz. Mas no fundo, preservar a caatinga é um modo de proteger o direito que qualquer povo tem de viver a seu modo, e fazendo isso podemos tornar a vida como um todo mais diversa, multiplica-se o mundo. Antes conhecer o mundo alheio para tornar nosso modo de vida mais interessante em que podemos fazer o exercício de imaginarmo-nos sendo outro que nós; que, com a desculpa de melhorar o alheio a partir do modo de vida moderno, passar a desenhar políticas para “desenvolver”, à sua imagem e semelhança, uma diferença com a qual não se quer tecer um encontro, uma relação. E sabemos o desastre socioeconômico e cultural que o esforço de des-envolver, de des-englobar, de excluir diversos povos de seu modo de vida em nome de outro produziu e vem produzindo ao longo da história. Menos cerca e indústria da seca e mais povo da floresta branca, mais caatinga, a grande reserva de sentido para sertão como o Fora às gramáticas e cercas da monocultura do pensamento.
Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.
Artigos citados pelo entrevistado e links para acessá-los:
Lopes, G.R. Lo que los vedores rastejam en la caatinga de Bahia. Revista Española de Antropología Americana, v. 53, n. 2, 2023. Disponível em: https://revistas.ucm.es/index.php/REAA/article/view/84477/4564456566569
Lopes, G.R. “O homem quis ser o Herói…” Especulaciones caatingeiras sobre el fin del mundo. AVÁ, n. 39, 2021. Disponível em: www.ava.unam.edu.ar/images/39/n39a03.pdf