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As formas da Caatinga, cobrindo serras, planícies e margens de rios, tornaram-se matéria de inspiração para poetas e prosadores. Franklin Távora (1842-1888), nascido no Ceará, foi um dos primeiros romancistas a ambientar suas histórias em terras caatingueiras, como ocorre em O Cabeleira (1876). Em carta publicada no final desse livro, Távora recorre ao Dicionário da Língua Tupi (1858), de Gonçalves Dias, para definir a Caatinga como “mato enfezado e bravo”, considerando essa palavra como “voz muito usada em todo o interior do norte do Brasil”

Porém, na literatura brasileira do século XIX, a obra que melhor captou o encantamento da paisagem da Caatinga foi escrita por uma mulher, também de origem cearense, de nome Emília Freitas (1855-1908). O seu mais importante livro, intitulado A Rainha do Ignoto, foi publicado em 1899 e é considerado um romance inovador no cenário literário brasileiro por se inserir no gênero fantástico. 

Característica dessa literatura fantástica associada à Caatinga aparece logo nas primeiras páginas, quando lemos o seguinte diálogo:

“– Aqui, deste outro lado, vejo outra serra muito alta – disse o doutor Edmundo.

– Qual? Aquele serrote? Parece alto porque está mais perto – volveu o menino – Aquela é a serra do Areré, mas é encantada, ninguém vai lá.

– Ninguém! Por quê? Disse Edmundo com espanto.

– Porque, se for, não voltará mais. Dizem que tem uma gruta onde mora uma moça encantada numa cobra, que à noite sai pelos arredores a fazer distúrbios.”

Os moradores de Itaiçaba, município do Ceará, conhecem bem essa história. A referência é à Serra do Ereré, na entrada da cidade, à margem do rio Jaguaribe, lugar de trilhas e paisagens surpreendentes, cujo encantamento ainda é fértil na imaginação popular e foi eternizado no romance de Emília Freitas.

Uma história inovadora

A Rainha do Ignoto é um livro inovador em vários aspectos. Em primeiro lugar, por ter sido o primeiro romance de autoria feminina publicado no Ceará. Em segundo lugar, por abordar o universo feminino com sensibilidade e argúcia. Em terceiro lugar, por ter sido escrito de forma ousada em gêneros pouco exercitados no Brasil, como o fantástico, o gótico e o psicológico. 

O leitor mergulha numa fantasia envolvente, que começa na Serra do Ereré, na localidade de Passagem das Pedras (atual Itaiçaba). É nesse lugar que se encontra o doutor Edmundo, vindo da cidade de Recife para se apossar das terras que herdou de seus pais. E é nesse lugar que mora Valentim, o menino que apresenta ao doutor da cidade a serra encantada, onde vive a misteriosa moça. A partir desse ponto, o leitor é lançado num universo fantasioso, em que o feminino ganha protagonismo e em que as causas sociais e filantrópicas ganham destaque.

Caatinga encantada

Embora não cite diretamente a palavra Caatinga em seu romance, é evidente que a história escrita por Emília Freitas é ambientada na paisagem caatingueira. Por ter nascido em Jaguaruana, à época pertencente a Aracati, município cearense em que também ficava o povoado de Passagem das Pedras, ela conheceu bem as terras que avançavam para o interior e ouviu inúmeras histórias sobre a Caatinga encantada, ambiente povoado de animais e árvores surpreendentes. E foi essa a matéria de inspiração para o seu romance. 

O mergulho na fantasia é expresso no doutor Edmundo, personagem que, depois de saber da história da serra encantada, não mais se livrou da curiosidade de conhecer os seus encantos, conforme lemos na seguinte passagem:

“Maio, o belo mês das flores, já ia em meio, e nas suas tardes serenas e tépidas, as andorinhas, estas mensageiras do fim do inverno, cortavam os ares e, chilreando, procuravam os ninhos nos velhos muros, nas janelas e cimalhas das casas.

Edmundo, acompanhando com as vistas os recortados voos dessas aves de passagem ou arribação, sentou-se junto à janela aberta e repassava pela mente o que tinha visto na tarde anterior, sobre o monte Solitário da serra do Areré.”   

Esses encantos são a própria expressão da Caatinga, com suas múltiplas faces ecológicas, antropológicas e literárias. Nesse sentido, o livro de Emília Freiras é um convite à imaginação; é um convite para ver a Caatinga com outros olhos: com o olhar do encantamento que embala a fértil imaginação dos caatingueiros, mas também com o olhar criativo de uma mulher escritora que desafiou os padrões literários brasileiros no final do século XIX.

Fonte consultada:

FREITAS, Emília. A Rainha do Ignoto. São Paulo: 106, 2019.

OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante. Uma escritora na “periferia do Império”: vida e obra de Emília Freitas (1855-1908). Florianópolis: Mulheres, 2008.

TÁVORA, Franklin. O Cabeleira. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1876.


Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.