O uso do fogo nas práticas agrícolas remete à época neolítica. Desde então, a preparação do solo com queimadas tem sido realizada há milhares de anos. Nos domínios da Caatinga, o bioma exclusivamente brasileiro, agricultores lançam mão dessa técnica desde os tempos coloniais e, ainda hoje, antes do período chuvoso, é possível notar focos de queimadas espalhados em regiões rurais.
Trata-se de assunto delicado. Por um lado, o fogo pode facilmente fugir do controle e se propagar por florestas, comprometendo severamente ecossistemas. Por outro lado, mexe com interesses econômicos concentrados em fronteiras agrícolas onde se pratica monocultura de larga escala. Mas toca também no trabalho dos lavradores mais pobres, que herdaram o costume milenar de seus antepassados e, em grande medida, não dispõem de recursos tecnológicos nem de conhecimentos técnicos para adotar formas sustentáveis de manejo do solo.
Por ser tão antiga, a queimada agrícola é técnica inevitável na preparação da terra? Quem responde a essa questão é Maria Amanda Menezes Silva, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), em Acopiara. Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Regional do Cariri (URCA), mestre em Ciências Florestais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e doutora em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Amanda Menezes tem uma trajetória de pesquisa que perpassa dois biomas diferentes: a Mata Atlântica e a Caatinga.
Neste Papo Caatingueiro, Menezes reflete sobre as queimadas como um problema que atinge os diferentes biomas, mas que deixa especialmente vulneráveis as florestas secas. E, ao refletir sobre essa questão, aponta para outras formas de preparo da terra, como os “sistemas agroflorestais”, que, segundo ela, possui “um conjunto de possibilidades para que o solo seja usado de forma mais sustentável”, uma vez que possibilita, sem necessidade de queimadas, “realizar a cobertura morta e usar espécies nativas que ajudam a recuperar as características nutricionais do solo”.
Associação Caatinga | Suas pesquisas de mestrado e doutorado tratam da floresta tropical úmida, com foco na Mata Atlântica do Nordeste. No entanto, a Caatinga também está presente nos seus estudos. Como é trabalhar com esses dois biomas? São, de fato, complexidades ambientais inteiramente diversas ou você percebe semelhanças?
AM | Estudei Florestas Tropicais Úmidas durante a Pós-Graduação, mas ao ingressar no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) como docente encontrei a oportunidade de estudar a Caatinga, uma vez que o campus no qual trabalho está inserido em meio à paisagem do semiárido. Trabalhar com os dois domínios é muito gratificante, cada um com suas belezas e particularidades, o que demonstra a grandiosidade da natureza existe no Brasil. São ambientes com complexidades diferentes, mas com alta riqueza de espécies que desempenham funções importantes e oferecem serviços ecossistêmicos essenciais. Pesquisadores da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) têm estudado os dois domínios de forma concomitante, acreditando que as informações de um, como estratégias de convivência com a seca na Caatinga e de recuperação da Mata Atlântica, podem ser úteis para o gerenciamento do outro.
AC | Ultimamente temos visto notícias sobre o agravamento de queimadas nas florestas brasileiras. É correto dizer que esse problema afeta mais as florestas secas do que as florestas úmidas? Como as queimadas têm impactado a Caatinga?
AM | Naturalmente é um problema mais comum em florestas secas devido às altas temperaturas, baixa umidade e maior velocidade dos ventos. No entanto, além das mudanças climáticas, o desmatamento tem contribuído bastante para tornar florestas úmidas susceptíveis às queimadas. O desmatamento fez com que a Mata Atlântica fosse fragmentada, expondo as bordas dos fragmentos a maiores temperaturas. As queimadas impactam a Caatinga de várias formas. A temperatura do ambiente aumenta, o solo é erodido com mais facilidade, perde nutrientes e organismos essenciais e reduz a produtividade, aumentando o risco de desertificação. Além disso, destrói habitats importantes para muitas espécies, reduzindo a riqueza da fauna e da flora local, e afeta a resiliência do ambiente.
AC | Sua formação acadêmica revela uma trajetória por diferentes lugares do Nordeste, desde a graduação na Universidade Regional do Cariri, passando pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde fez o mestrado, e completando-se com o doutorado na Universidade Federal do Ceará. De que modo as vivências nesses lugares impactaram na sua percepção e compreensão da Caatinga?
AM | Durante a minha trajetória acadêmica tive a oportunidade de trabalhar com pesquisadores que se dedicam a estudar a Caatinga há muitos anos. Foram visões diferentes e complementares. A graduação em Ciências Biológicas, e a pós-graduação em Ciências Florestais e Ecologia me permitiram estudar e compreender características e mudanças que ocorrem nesses ambientes ao longo do tempo, assim como impactos das ações antrópicas sobre a vegetação dessas áreas.
AC | Você tem feito algumas reflexões sobre queimada agrícola. Como você a define? Ela ainda persiste? É uma técnica inevitável ou há outras práticas alternativas de manejo da terra?
AM | A queimada agrícola é uma prática antiga de manejo que consiste em derrubar a vegetação e, em seguida, queimar os indivíduos remanescentes, preparando a área para o plantio. No entanto, as queimadas agrícolas ocorrem em áreas de agricultura (cultivo de alimentos) e pecuária (criação de animais), enquanto as queimadas florestais são usadas em áreas de silvicultura (cultivos florestais). As queimadas persistem nas duas formas de produção agrícola [de larga e pequena escala]. Não é uma técnica inevitável, algumas alternativas já são conhecidas. Os sistemas agroflorestais, por exemplo, são citados por muitos pesquisadores por possuir um conjunto de possibilidades para que o solo seja usado de forma mais sustentável. Neles é possível realizar a cobertura morta, não sendo necessário realizar queimadas, e usar espécies nativas que ajudam a recuperar as características nutricionais do solo.
AC | Qual a relação entre a agricultura e as queimadas na Caatinga? As especulações e os interesses econômicos têm afetado a preservação do bioma?
AM | As queimadas podem ocorrer de forma natural ou antrópica, mas levantamentos têm apontado que a maioria das queimadas está relacionada às práticas agrícolas. E sim, as especulações e os interesses econômicos afetam a preservação da área. Sabe-se que a região do semiárido é uma das menos protegidas do país, apenas 1,3% está em Unidades de Conservação de proteção integral, e que, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 40% das áreas da Caatinga se encontram em diferentes níveis de degradação, 8% estão com o solo exposto, e 8% são utilizados para cultivo.
AC | Na sua atuação como professora no Instituto Federal do Ceará, em Acopiara, como você percebe a relação dos estudantes com a Caatinga? Há ações ou pesquisas que tratam do combate a queimadas nessa região?
AM | Como docente do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas percebo que existe um incomodo por parte dos estudantes frente aos impactos sofridos pela Caatinga. Alguns trazem o conhecimento empírico que é fruto da convivência com os familiares, que tiram o sustento das áreas de Caatinga, enquanto outros não possuem a vivência, mas despertam para a questão ao longo do curso. No campus existem algumas ações pontuais, como palestras e pesquisas relacionadas aos efeitos do fogo sobre as espécies vegetais nativas. Mas os planos são desenvolver atividades de extensão rural, com parcerias locais, para informar e qualificar os agentes diretamente envolvidos.
AC | Com base nas suas experiências de pesquisa, bem como sua inserção profissional no interior do Ceará, quais ações podem ser tomadas contra as queimadas?
AM | Considero que ações importantes, e que podem ser realizadas a nível municipal, consistem em investir na fiscalização, treinar brigadistas para realizar o controle do fogo e realizar campanhas visando sensibilizar a respeito dos danos ambientais causados pela prática. Além disso, é necessário realizar ações com o objetivo de conscientizar sobre a importância da conservação e do uso sustentável do solo. As queimadas ocorrem em períodos comuns todos os anos, não podemos esperar os próximos eventos estarem acontecendo para agirmos. As medidas precisam ser tomadas previamente para que os danos sejam evitados.
AC | E quanto à sua relação com a Caatinga, além do envolvimento profissional há motivações afetivas que te levam a se engajar no estudo e preservação do bioma?
AM | Sou do semiárido cearense, filha de agricultor, e cresci em meio à resistência vivida pela população da região. Entendo que conhecer o ambiente auxilia para que as melhores decisões de manejo sejam tomadas, sendo fundamental para embasar políticas públicas, e para que os recursos sejam usados de forma sustentável, possibilitando que as pessoas envolvidas consigam viver na região com qualidade de vida.
Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.