Em 28 de abril, comemora-se o Dia Nacional da Caatinga. Mais do que uma data para celebrar a existência do “bioma exclusivamente brasileiro”, trata-se de uma conquista que é fruto do conjunto de esforços voltados ao reconhecimento e à conservação de uma enorme biodiversidade. Enquanto uma conquista popular, ecológica e científica, esse dia coloca em cena o multicolorido de uma paisagem que nem sempre teve a sua importância reconhecida. Na verdade, ainda há muito o que descobrir e reconhecer da Caatinga. Evidência disso é o fato desse bioma, assim como o Cerrado, não constar como patrimônio nacional na Constituição Federal, e, por essa razão, fica fora dos tratamentos especiais de proteção tal como recebem a Amazônia e a Mata Atlântica.
A data é recente, tardia até, considerando a histórica relação de convivência criativa entre o bioma e os caatingueiros, mas abre um caminho de reflexões próprias do sentido de comemorar, isto é, como um ato coletivo de trazer à memória algo que é, ao mesmo tempo, singular em sua existência e plural em biodiversidade.
Se toda data tem uma história, a história de 28 de abril remonta ao ano de 2003, quando o Governo Federal decretou que, a partir de então, anualmente, deveria ser comemorado em todo o país o Dia Nacional da Caatinga. A escolha se deu em homenagem ao professor João Vasconcelos Sobrinho (1908-1989), pernambucano da cidade de Moreno, um dos pioneiros nos estudos ambientais no Brasil. Além de tudo isso, Vasconcelos Sobrinho foi também um dos fundadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), onde passou a oferecer a disciplina “Ecologia Conservacionista”. Desde então, uma gama de possibilidades se abriu para o estudo da Caatinga nas suas mais variadas dimensões ecológicas.
Com a ampliação das universidades, de centros de pesquisa e de programas de pós-graduação no Nordeste, ocorrida a partir do final dos anos 2000, a Caatinga recebeu uma atenção científica mais acurada, mais sensível e criteriosamente ligada não apenas às observações empíricas, mas também às vivências dos pesquisadores que ali nasceram. O Papo Caatingueiro já trouxe diversos olhares de pessoas que vivenciaram o bioma antes mesmo de pesquisá-lo.
Neste Papo, para nos oferecer uma nota atualizada da conservação da Caatinga, convidamos Marcelo Freire Moro, graduado em Ciências Biológicas e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará (UFC), além de doutor em Biologia Vegetal pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Desde 2016, atua como professor do curso de Ciências Ambientais da Universidade Federal do Ceará. Seu conhecimento dimensiona a Caatinga como um “lar para mais de três mil espécies de plantas e centenas de aves, mamíferos, répteis, anfíbios, peixes e inúmeras espécies de invertebrados”.
Mas sua experiência nos alerta: “um problema que eu vejo como grave é a baixa cobertura de Unidades de Conservação na Caatinga. Não temos nem 10% de áreas protegidas, e a vasta maioria do total de áreas protegidas são APAs, que oferecem poucas restrições de uso”. E é justamente por isso que a “proteção à biota da Caatinga precisa de mais […], precisamos restaurar áreas degradadas, matas ciliares, reservas legais e aprender a produzir e conviver com a biodiversidade do nosso semiárido […].”

Marcelo Moro é professor titular da Universidade Federal do Ceará e coordenador do Laboratório de Biogeografia e Estudos da Vegetação (BIOVEG);
ENTREVISTA:
Associação Caatinga | Em 28 de abril comemora-se o Dia Nacional da Caatinga. De maneira geral, o que podemos celebrar e o que podemos lamentar tendo em vista a conservação desse bioma?
Marcelo Freire Moro | Em primeiro lugar, devemos celebrar uma conscientização cada vez maior sobre a importância da Caatinga e de sua biodiversidade. Há algumas décadas, havia pouco conhecimento científico documentando a biodiversidade da Caatinga e ela chamava pouca atenção da mídia e das medidas de conservação. Tanto que muitas vezes, e isso ainda acontece atualmente, áreas desmatadas eram colocadas na mídia como sinônimo de Caatinga. O resultado é que havia, e infelizmente ainda há, poucas ações de conservação e proteção para a Caatinga, tanto que enquanto Pantanal, Mata Atlântica e Amazônia são considerados patrimônios nacionais pela Constituição de 1988, a Caatinga não é. Mas, cada vez mais essa visão está mudando.
Já temos bons documentários e matérias jornalísticas na televisão aberta sobre a Caatinga, e o conhecimento científico e a percepção da sociedade sobre a Caatinga cresceram muito. Hoje sabemos que a Caatinga é lar para mais de três mil espécies de plantas e centenas de aves, mamíferos, répteis, anfíbios, peixes e inúmeras espécies de invertebrados.
Mas ainda temos que lamentar vários pontos. Um deles é que 50% da Caatinga já está desmatada, e a metade restante ainda sofre degradações resultantes de desmatamento, queimadas e caça ilegal. Ademais, só 8% da Caatinga está protegida por Unidades de Conservação (UCs), e mesmo assim, isso é contando com grandes Áreas de Proteção Ambiental (APAs), que têm baixo grau legal de proteção para o ecossistema. Só 1,3% da Caatinga está em UCs de proteção integral, que têm maior grau de restrição ao uso, ou nas UCs de uso sustentável mais protegidas, como as Florestas Nacionais e Estaduais.
AC | A propósito, se quisermos consultar dados atuais sobre a conservação e a degradação da Caatinga, é possível encontrá-los sistematizados? Em quais fontes e/ou plataformas?
MFM | Acho que uma obra de síntese inicial, que foi muito importante, foi o livro “Vegetação & Flora da Caatinga”, de Sampaio e outros, publicado em 2002. Depois, o livro “Ecologia e conservação da caatinga”, de Leal e outros, publicado em 2003 foi outro marco.
Em 2015 e 2016 publiquei, como parte do meu doutorado, uma síntese da literatura florística e fitossociológica disponível sobre a Caatinga e uma análise geral dos padrões biogeográficos da Caatinga, que trouxeram uma compilação dos dados e análises de biodiversidade florística para a Caatinga como um todo.
Em 2017, saiu pela Springer um importante livro compilando muita informação sobre a Caatinga, o “Caatinga: The Largest Tropical Dry Forest Region in South America”, de Silva e outros.
Sobre o quanto temos de áreas remanescentes na Caatinga, creio que merece destaque um estudo realizado por pesquisadores da UFRN que mapeou o quanto sobrou da Caatinga e o grau de fragmentação de diferentes áreas dela.
Em 2021, tanto meu laboratório na UFC quanto, em paralelo e sem sabermos do trabalho um do outro, o pessoal da UFRN, calculamos o quanto da Caatinga está protegida em UCs, mostrando que ainda temos bem poucas áreas protegidas na Caatinga e que precisamos de mais UCs de proteção integral e mais UCs de uso sustentável com maiores restrições que as APAs, que são categorias que oferecem pouca proteção efetiva à vegetação.
Um destaque importante foi o check list geral de flora da Caatinga, produzido por pesquisadores da Universidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade Federal da Bahia, que fizeram uma grande compilação geral sobre a flora da Caatinga, mostrando que temos mais de três mil espécies nativas e mais de quinhentas espécies vegetais endêmicas na Caatinga.
Creio que as obras acima dão um bom panorama sobre a biodiversidade e conservação da Caatinga.
AC | E se formos estabelecer um quadro comparativo dos biomas brasileiros, considerando as políticas de preservação, conservação e pesquisa aplicada, qual a situação da Caatinga?
MFM | Acho que as pesquisas sobre a Caatinga cresceram muito nos últimos 30 anos, e estão cada vez mais detalhadas. Por outro lado, a conservação da Caatinga é um desafio, como também é nos outros biomas brasileiros. De fato, em todo o território brasileiro, o desmatamento, queimadas, caça são problemas sérios, e isso também ocorre na Caatinga.
Um problema que eu vejo como grave é a baixa cobertura de UCs na Caatinga. Não temos nem 10% de áreas protegidas, e a vasta maioria do total de áreas protegidas são APAs, que oferecem poucas restrições de uso. Até mineração e zonas urbanas temos dentro dos limites das APAs, o que faz com que a área de Caatinga efetivamente protegida seja menor do que as UCs que aparecem no papel. Acho que a criação de mais UCs, especialmente as de Proteção Integral e as de uso sustentável mais restritivas é uma estratégia importante.
Também é relevante a propagação, em toda a extensão da Caatinga, de técnicas de manejo da terra e da vegetação que permitam o uso do território sem gerar eventos extremos de degradação, como se vê nos núcleos de desertificação. Nas áreas já desertificadas, séculos ou décadas de usos inadequados levaram à perda de vegetação, da qualidade do solo e da produtividade econômica, deixando essas áreas em estado crítico. É preciso aprender a proteger de modo definitivo uma porção significativa da Caatinga e a manejar de modo sustentável toda sua extensão, incluindo ações de educação ambiental para proteção da flora nativa e da fauna.
AC | Em sua visão, a universidade tem conseguido conscientizar e mobilizar a sociedade em relação à conservação da Caatinga? O que tem sido feito e o que ainda pode ser colocado em prática?
MFM | Acho que temos parcialmente conseguido conscientizar e mobilizar. Ações de mobilização social só são alcançadas com o esforço conjunto de múltiplos atores, como a mídia, ONGs, associações, ações individuais e coletivas, das quais muitas pessoas e instituições diferentes, incluindo também as Universidades, fazem parte. Mas os resultados efetivos são mérito de muitos atores atuando em conjunto.
AC | A Caatinga predomina em quase todos os estados do Nordeste. Há um esforço integrado de políticas e ações para o uso sustentável e a conservação do bioma ou isso ocorre de maneira mais local?
MFM | De fato falta esse esforço integrado de proteção para a Caatinga como um todo. Acho que nem nos estados, individualmente, temos conseguido uma política de proteção efetiva para a Caatinga. Por exemplo, na Caatinga temos apenas 1,3% de UCs de proteção integral, mas fizemos um estudo para o estado do Ceará e tivemos ainda menos proteção: apenas 0,6% do estado do Ceará, o estado onde a Caatinga é mais dominante, é coberto por essas UCs, mostrando as grandes lacunas de conservação. Ademais, parte considerável de nossas UCs estão nos ambientes de exceção, como a região costeira e as serras úmidas, deixando quase sempre a vegetação de caatinga desprotegida. Seria muito positivo uma ação coordenada entre o Governo Federal e todos os governos estaduais onde ocorre a Caatinga propondo ações integradas de proteção e restauração.
AC | Para finalizar, existem muitas espécies ameaçadas ou em vias de extinção na Caatinga? Quais as formas e os caminhos possíveis para recuperá-las?
MFM | Ainda precisamos avaliar mais espécies na Caatinga para descobrir quantas delas são ameaçadas. Mas sabemos que algumas espécies muito ameaçadas como a arara-azul-da-caatinga (Anodorhynchus leari) e a ararinha-azul-da-caatinga (Cyanopsitta spixii) são exemplos de aves ameaçadas. A ararinha-azul chegou a ser extinta na natureza e está sendo reintroduzida, ao passo que a proteção às populações remanescentes da arara-azul-da-caatinga tem permitido sua recuperação gradual. Mas a proteção à biota da Caatinga precisa de mais, é necessário controlar o desmatamento, as queimadas, a caça e o tráfico de animais.
Também precisamos restaurar áreas degradadas, matas ciliares, reservas legais e aprender a produzir e conviver com a biodiversidade do nosso semiárido, sem caça nem queimadas ilegais. Outra ameaça grave e global são as mudanças climáticas. Nos estudos do nosso laboratório temos visto que as mudanças climáticas trazem um cenário mais quente e seco para a Caatinga, tornando árida áreas que antes eram semiáridas. Nos modelos que rodamos ou que já foram publicados até agora, em geral, essas mudanças são negativas para a flora da Caatinga, reduzindo a área adequada para várias espécies nativas. Espero que mudemos, enquanto sociedade, nossa atuação sobre os ecossistemas do Brasil em geral e a Caatinga em particular, atuando tanto em escala local, quanto em ações globais.
Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.