Se lançarmos nos mecanismos de busca online os termos “mudanças climáticas” e “Nordeste”, várias matérias em tom de alerta aparecem diante de nossos olhos. Ao compararmos notícias entre os anos de 2022 e 2023, impressiona a instabilidade do clima: das inundações avassaladoras à seca extrema.
Em maio de 2022, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), as inundações foram 20% mais intensas devido às mudanças climáticas. Em agosto de 2023, conforme o Diário de Pernambuco, as ondas de calor cada vez maiores resultam de alterações climáticas ocorridas nos últimos 60 anos.
Neste papo catingueiro, conversamos com uma entendedora da Caatinga pelo prisma da ciência, que tem reivindicado um olhar interdisciplinar para estudar como as mudanças climáticas têm afetado o bioma. Regina Célia da Silva Oliveira, bióloga de formação, transitou por diversas áreas do Nordeste e, por isso mesmo, vivenciou a Caatinga no plural, isto é, em todas suas facetas.
O olhar científico de nossa entrevistada, no entanto, acolhe e conta com a colaboração de outros olhares que são, ao mesmo tempo, valiosos e valorosos. Se o primeiro termo indica estima, o segundo indica coragem. E é por isso que ela enfatiza que estudos científicos devem buscar “entendimentos locais junto a habitantes tradicionais, incluindo comunidades indígenas, fundo de pasto, agricultores, ribeirinhos, quilombolas e outros grupos humanos (que têm um profundo conhecimento acumulado ao longo das gerações)”. É necessário, portanto, estimar a sabedoria e buscar inspiração na coragem dos catingueiros.
Regina Célia Oliveira é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade de Pernambuco (UPE), mestra em Recursos Genéticos Vegetais pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e doutora em Etnobiologia e Conservação da Natureza pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Atualmente, é professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), campus Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí. Como se vê, Pernambuco, Bahia e Piauí estiveram e estão no roteiro de sua formação e atuação profissional.
Nascida em Petrolina, cidade pernambucana às margens do rio São Francisco, ela cresceu ouvindo as histórias contadas por sua mãe “sobre a vida na roça e a dependência da natureza para o sustento dos seus pais e dos seus irmãos…”. Em vista do assunto deste papo, tão complexo e tão decisivo na medida que está em jogo o próprio destino do planeta, eis o que ela diz: “diante dessa complexidade, ao longo do tempo a literatura científica tem enfatizado a necessidade de abordagens interdisciplinares para uma compreensão mais abrangente dessa realidade climática”. Os desdobramentos dessas palavras podem ser acompanhados a seguir.
Associação Caatinga | Atualmente, as mudanças climáticas globais têm sido amplamente discutidas. Em sua atuação profissional, você defende uma visão interdisciplinar para abordar tal questão. A partir de quais campos científicos você pensa as mudanças climáticas e como essa interdisciplinaridade te ajuda a entender melhor o problema?
Regina Célia da Silva Oliveira | As mudanças climáticas representam um desafio complexo e global, cujos impactos têm sido uma preocupação crescente devido à velocidade com que têm afetado o planeta. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, por exemplo, destaca a discrepância na distribuição e percepção desses impactos entre diferentes regiões e grupos humanos. Isso significa que certos locais e populações humanas são mais vulneráveis que outros, a exemplo de pessoas que vivem em áreas áridas e semiáridas aqui no Brasil, as quais têm enfrentado impactos das secas cada vez mais severos. Diante dessa complexidade, a literatura científica tem enfatizado a necessidade de abordagens interdisciplinares para uma compreensão mais abrangente dessa realidade climática. Ao longo do meu doutorado, tive a oportunidade de testar algumas dessas metodologias. Entendo que a integração de métodos provenientes de campos como ecologia de populações, psicologia cognitiva, psicologia evolutiva e Etnobiologia têm se mostrado fundamentais para a análise dos modos como as populações humanas enfrentam e se adaptam aos impactos das mudanças climáticas em nível local. Essas abordagens têm permitido uma compreensão mais profunda de como as pessoas que vivem em áreas semiáridas do Nordeste do Brasil lidam com os desafios climáticos e desenvolvem estratégias de adaptação. Entender esse problema de forma local permite levantar hipóteses a serem testadas em ambientes similares e posteriormente comparadas.
AC | E como é pensar as mudanças climáticas a partir da Caatinga?
RCSO | Com as mudanças climáticas em curso, e diante do fato de áreas áridas e semiáridas serem apontadas como mais vulneráveis a seus impactos, é fundamental antecipar e compreender os seus efeitos negativos sobre as florestas tropicais secas. A Caatinga é naturalmente sensível às variações climáticas, e as atuais alterações rápidas do clima podem desencadear uma série de fatores negativos, incluindo desertificação, perda de biodiversidade e diminuição da resiliência desse ecossistema tão rico e exclusivamente brasileiro. Assim, pensar na Caatinga face aos impactos climáticos é buscar por alternativas que possam traçar meios para restauração dessas áreas, a exemplo do reflorestamento e da conservação do conhecimento ecológico de populações que vivem no entorno dessas florestas – este último exemplo é crucial, pois esse conhecimento é milenar e guarda técnicas de manejo, conservação e restauração dos recursos naturais que não encontramos em livros científicos. Além disso, desenvolver estratégias de adaptação para ajudar tais comunidades humanas e os ecossistemas a se ajustarem às mudanças climáticas é urgente. Isso pode incluir práticas agrícolas sustentáveis, sistemas de manejo de água e solo somados a educação ambiental e conscientização para incentivar as pessoas a conhecerem a Caatinga e a valorizarem. Isso envolve engajar comunidades locais, governos, instituições de ensino/pesquisa e organizações não governamentais. Em suma, prever e melhor compreender os impactos das mudanças climáticas globais na Caatinga é crucial para pensar em estratégias eficazes de mitigação e adaptação. Proteger nosso ecossistema e reduzir os impactos negativos das mudanças climáticas sobre a Caatinga é urgente.
“A Caatinga é naturalmente sensível às variações climáticas, e as atuais alterações rápidas do clima podem desencadear uma série de fatores negativos, incluindo desertificação, perda de biodiversidade e diminuição da resiliência desse ecossistema tão rico e exclusivamente brasileiro”.
AC | Em seu doutorado, você estudou o papel do conhecimento ecológico local diante das mudanças ambientais. Em linhas gerais, poderia falar um pouco sobre esse trabalho?
RCSO | Populações humanas têm uma capacidade notável de acumular conhecimento através das interações diárias com o ambiente que as cercam. Especificamente, grupos que habitam áreas próximas a florestas desenvolvem uma percepção peculiar da paisagem local e de seus componentes. Essas observações cotidianas gradualmente se transformam em um conhecimento prático sobre os recursos naturais da região. É importante ressaltar que essas percepções e saberes locais, transmitidos oralmente ou por práticas locais, têm uma natureza subjetiva. No entanto, essas experiências desempenham um papel fundamental na compreensão da dinâmica local. Muitos desses conhecimentos são transmitidos entre gerações, permitindo uma compreensão mais profunda da biodiversidade presente e passada naquela área, que podem revelar mudanças ao longo do tempo. Durante a minha pesquisa, foi possível estabelecer comparações entre dados ecológicos da flora da Caatinga (no entorno de uma comunidade localizada no Agreste de Pernambuco) e informações socioecológicas sobre o mesmo ambiente. É notável como muitos aspectos que não são facilmente observáveis através de métodos estritamente ecológicos podem ser diagnosticados a partir do conhecimento local e das informações obtidas por meio dele. Essa integração de diferentes fontes de informação tem revelado insights valiosos sobre a dinâmica e a história ambiental de uma região específica.
AC | Nessa mesma pesquisa, você aborda os povos rurais no semiárido, com foco específico na comunidade rural de Carão, município de Altinho (PE). Qual foi sua percepção sobre a relação dessa comunidade com a Caatinga? E como as mudanças climáticas têm afetado os povos rurais do semiárido?
RCSO | As comunidades do semiárido nordestino, incluindo Carão, enfrentam intensas pressões ambientais, especialmente a severidade da seca. Embora seja um fenômeno natural, seus impactos e a velocidade destes têm se intensificado. A convivência direta com essas mudanças ao longo do tempo tem levado essas pessoas, de maneira consciente ou não, a desenvolver representações mentais sobre as incertezas climáticas. Consequentemente, elas buscam formas de lidar com os impactos, visando maior segurança durante adversidades. Observei, ao longo da minha pesquisa junto aos moradores de Carão, que muitos apontavam que certas mudanças desencadeavam outras, resultando em novos impactos locais. Mas é interessante notar que isso não os limitavam a buscar maneiras de reduzir esses efeitos, embora frequentemente sem muito sucesso. Em resumo, as pessoas destacavam a ocorrência de mudanças em cascata, desencadeando uma série de impactos diversificados, o que dificultava sua gestão local, muitas vezes também impedida pelo fator idade, pois na comunidade a maioria era composta por idosos. Porém, é importante destacar um fato relevante que surgiu nessa comunidade: um jovem decidiu experimentar técnicas de apicultura e percebeu que funcionava. Ele compartilhou esse conhecimento com outros jovens da comunidade, e até conseguiu aprovar um projeto junto a uma iniciativa privada. Hoje eles estão envolvidos na criação de abelhas para produção de mel, mesmo durante períodos de estiagem. Essa iniciativa demonstra uma resposta positiva e adaptativa diante das condições adversas, mostrando uma forma de enfrentar e superar os desafios climáticos na região. Tais desafios também podem ser resolvidos e/ou pelo menos reduzidos a partir de políticas públicas mais bem direcionadas que capacitem povos locais com intuito de ajudá-los a lidar com os efeitos severos das mudanças climáticas sobre áreas áridas e semiáridas do Nordeste do Brasil.
AC | Para finalizar, gostaria que falasse da sua relação afetiva com a Caatinga. Suas origens remetem às vivências nesse bioma?
RCSO | Acredito que a admiração que carrego pela Caatinga está profundamente entrelaçada com a resiliência e a inspiração transmitidas por meus pais, especialmente por minha mãe e a sua narrativa de vida com seus pais e irmãos no semiárido pernambucano. Crescer ouvindo as histórias que ela contava sobre a vida na roça e a dependência da natureza para o sustento dos seus pais e dos seus irmãos, e os cuidados de saúde com o uso dos recursos naturais, pode ter sido o gatilho para moldar a minha percepção sobre a Caatinga desde a infância. Embora não tenha crescido vivendo a mesma realidade dos meus pais, pois nasci na zona urbana, na cidade de Petrolina, a resiliência que a minha família demonstrou ao enfrentar as secas severas na roça onde residiam parece ter direcionado a minha visão para o que eu iria me tornar no futuro. Nas suas narrativas, a minha mãe sempre evidenciava que, mesmo de maneira muito difícil, era na Caatinga que encontrava não apenas os recursos básicos para sobrevivência, mas fontes de cura e alimento. Isso deixou em mim uma marca profunda, além de muitas curiosidades sobre esse ecossistema tão peculiar. Portanto, acredito que a história de resiliência e superação da minha família diante das dificuldades alimentou o meu desejo de compreender e conservar a sabedoria popular associada à biodiversidade única da Caatinga. Penso que a minha história pessoal é uma poderosa narrativa de como a ligação com o meio ambiente pode moldar paixões e direcionar caminhos profissionais, ao mesmo tempo em que ressalto a importância da valorização do conhecimento ecológico local da Caatinga e seus componentes.
Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.