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“A passarada irrequieta descanta pelas frondes gotejantes”. Foi dessa maneira que, em Os Sertões, Euclides da Cunha referiu-se aos pássaros ressurgindo no período das chuvas. Escrito há mais de 120 anos, trata-se de livro fundamental para entender os rumos e contradições da República brasileira. E é nele que lemos a polissêmica frase: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Embora as teorias cientificistas que sustentam essa obra já tenham sido superadas, permanece potente a maneira inventiva que o autor descreve a paisagem da Caatinga em um dos territórios mais áridos do Brasil.

Conhecedor dos voos, encantos e cantos dessa passarada irrequieta, Weber Andrade de Girão e Silva faz ecoar as palavras célebres de Euclides ao dizer que “a Caatinga é forte como um sertanejo”. A frase ressoa poderosa porque expressa a potência de um bioma que tem resistido às mais variadas formas de degradação, das intempéries e alterações naturais às ações humanas.

Também são fortes as aves da Caatinga, como a jacucaca, ou jacu-verdadeiro, que, apesar da caça que o torna alvo desde muito tempo, tem conseguido resistir, havendo perspectiva de recuperar parte do contingente que só fora possível há mais de três séculos. O bico-virado-da-caatinga é outro caso admirável. Durante quase duas décadas foi dado como desaparecido, mas, surpreendentemente, ressurgiu na Reserva Natural Serra das Almas. “Seu simbolismo é mostrar o quanto a Caatinga pode surpreender”, destaca Weber Girão.

Membro da Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos, Weber Girão é biólogo da conservação e ornitólogo. Em sua trajetória de pesquisador da avifauna, conhece bem a força da Caatinga. Neste “papo caatingueiro”, em comemoração ao Dia Mundial da Ave, que ocorre em 5 de outubro, Girão toca em diferentes temas caros a quem se interessa pela conservação das aves.

Com visão sensível, atenta e profunda, destaca especialmente sua relação com a Reserva Natural Serra das Almas, onde atua a Associação Caatinga. E ao falar dessa Reserva, expressa um desejo: “Quero ver papagaios, araras e periquitos voando nas encostas da Reserva. Quero ouvir as zabelês cantando de novo por lá.” Que esse desejo seja compartilhado por um número cada maior de pessoas, e que saibamos escutar atentamente as palavras de Girão.

Associação Caatinga| No imaginário popular, ainda perdura a paisagem da Caatinga marcada pela aridez e monotonia. Como o estudo das aves pode mudar esse quadro?
Weber Girão| A quantidade de espécies em uma paisagem pode ser mais ou menos rica dependendo do referencial. De fato, o território da Caatinga não tem tantas espécies quando comparado a outros no Brasil, superando apenas o do Pampa. Em contrapartida, quando confrontada com áreas semiáridas em diferentes países, a nossa se mostra mais rica. Quando a análise considera espécies exclusivas, a Caatinga acentua um pouco mais a sua riqueza de aves. Mesmo em sua parte mais seca, não há monotonia na Caatinga quando temos a oportunidade de observá-la nas diferentes estações do ano. À medida que as folhas caem e o calor aumenta, as aves se mostram apenas nos horários mais amenos, entretanto, a chegada das chuvas é como uma festa que todos deveriam conhecer. A corrida para reprodução e a chegada de aves migrando de outras partes transforma o cenário visual e sonoro. Agora, quando falamos de encraves florestais sempre verdes na Caatinga, é como se cada um fosse único em sua composição.

AC| Sabemos que a Caatinga é um bioma que se estende por quase todo o Nordeste brasileiro. Nessa extensão, existe uma diversidade enorme de fauna e flora. Há espécies de aves que são próprias desse bioma e transitam por sua diversidade? Se fosse para citar algumas aves simbólicas da Caatinga, quais você destacaria?
WG| Existem aves cuja distribuição é quase toda abrangida pela área do bioma Caatinga. Uma dessas é a jacucaca, conhecida no Ceará como jacu-verdadeiro. Ela ocorre desde as planícies secas até as florestas úmidas nas serras, sendo naturalmente escassas ou ausentes em amplos planaltos sedimentares drenados, como a Chapada do Araripe, habitando apenas as bordas onde se encontram os vertedouros dos aquíferos ali existentes. Uma quantificação do Século XVII prova que jacus eram mais abundantes do que hoje em território cearense, e que apesar da caça, com os devidos cuidados, a espécie terá condições de recuperar parte do seu contingente. Esse jacu é, antes de tudo, um forte! Outra ave simbólica é o bico-virado-da-caatinga, cuja distribuição apresenta grande sobreposição com o bioma. Ao contrário da velha conhecida jacucaca, esse pássaro de bico que parece invertido foi notado e nomeado oitenta anos depois dela, permanecendo quase duas décadas desaparecido, quando voltou a ser encontrado nas imediações da Reserva Natural Serra das Almas. Seu simbolismo é mostrar o quanto a Caatinga pode surpreender.

AC| O “soldadinho-do-araripe” foi foco de seus estudos. Poderia falar um pouco sobre suas descobertas acerca dessa ave.
WG|
Tive a alegria de participar da descoberta dessa ave ainda muito jovem, aos 21 anos de idade. Isso trouxe questões de conservação com as quais ainda não sei lidar muito bem, mesmo após quase três décadas. Nesse meio tempo, trabalhei com aves que sucumbiram à extinção, mas também com outras que estão tendo sua condição melhorada. Conseguimos compreender muitos dos problemas que acometem a espécie e avançar em algumas soluções. Não estou satisfeito por apenas retardar sua extinção, pois quero revertê-la! Tenho trabalhado com parceiros para encontrar formas de conseguir isso. Sei que poderemos falhar, mas não por omissão. Lembro do ditado “o pior cego é aquele que não quer ver”, pois muito do que vivi e posso mostrar não é compreendido. Pensei que todo o problema estaria numa falta de eloquência de minha parte, mas constatei que a culpa também se deve à cegueira voluntária de muitos. Até hoje vejo a beleza do pássaro como no dia da descoberta. Percebo isso nas pessoas que o conhecem, mas não em todas.

“Pessoas chegam de diferentes países rumo à Caatinga para observar suas aves, entendendo que são um tesouro de apreciação.”

AC| Qual é o atual estado dos estudos das aves da Caatinga dentro do campo da Ornitologia no Brasil? Podemos dizer que há avanços nos últimos anos com a ampliação de universidades no interior do Nordeste?
WG|
Acabo de fazer uma “brincadeira” usando o livro de resumos do II Congresso de Ornitologia das Américas que ocorreu no início de agosto deste ano no Rio Grande do Sul. Uma busca pela palavra “Caatinga” resultou em 14 páginas onde o termo era presente. O equivalente para “Atlantic Forest” foi 48, para “Cerrado” foi 19 e para “Amazonia” foi 10. Repeti o exercício no livro de resumos de evento similar, realizado em São Paulo no ano de 2012, onde “Caatinga” teve 3 páginas, “Atlantic Forest” 57, “Cerrado” 22 e “Amazônia” 31. Os números brutos podem sugerir maior enfoque sobre a Caatinga em uma década de ornitologia. Alguém que queira levar esse tipo de avaliação adiante poderá quantificar a participação de universidades no interior do Nordeste e os temas mais recorrentes, me interessando principalmente a conservação.

AC| E quanto à preservação e conservação dessas aves, há muitas espécies ameaçadas? Quais as principais ameaças? Existem iniciativas que atuam contra essas ameaças?
WG|
O número de espécies ameaçadas varia em função da lista adotada (global, nacional ou estaduais do Ceará e da Bahia), sendo interpretadas de duas formas: com ou sem considerar as aves dos encraves florestais úmidos. As ameaças costumavam estar relacionadas à diminuição de contingente (caça e tráfico) e perda de ambiente e de sua qualidade (incêndios, desmatamentos, gestão ineficaz das águas, aerogeradores em lugares inapropriados, etc.), contudo, a crise climática vem se colocando como o maior desafio. Quanto à mitigação de ameaças, há um Plano de Ação Nacional para conservação das aves da Caatinga. Ele deve orquestrar ações entre aqueles que trabalham na linha de frente com as espécies, com a promessa de potencializar investimentos. Esse plano de recorte geográfico amplo assimilou planos de espécies como o soldadinho-do-araripe e arara-azul-de-lear (melhor seria chamá-la de arara-azul-da-caatinga). Segundo informado na reunião que deflagrou seu ciclo de atuação vigente, em algum momento também vai encampar o plano voltado à ararinha-azul. Para que essa estratégia nacional não perca efetividade, entendo que os estados devam avançar com seus próprios Planos de Ação e integrá-los.

AC| Como os habitantes da Caatinga podem contribuir para a preservação das aves?
WG|
Esses habitantes incluem desde empresas e políticos até aqueles que convivem diretamente com as espécies. Um caçador que mata um jacu para se alimentar é um problema, mas um político que promova a caça é muito pior, assim como uma empresa que dê suporte para alguém assim. Minha visão é de que, para o cidadão comum, conhecer e importar-se com as aves faria diferença para a proteção delas. Pessoas chegam de diferentes países rumo à Caatinga para observar suas aves, entendendo que são um tesouro de apreciação. Isso contrasta com a incapacidade local que muitos têm de simplesmente não enxergar a beleza disso. Valorar isso em dinheiro tem sido proposto como forma de modificar tal percepção. Particularmente, isso me desagrada, mas se a sociedade teimar em só entender o valor em cifrões, eu não estarei entre os mais persuasivos.

AC| Você elaborou, juntamente com Fábio Nunes, o Guia de Aves Reserva Natural Serra das Almas, publicado pela Associação Caatinga em 2021. Como você avalia a importância desse trabalho?
WG| Avalio a importância desse trabalho como um marco na história da RNSA. Quando estive lá pela primeira vez, logo após a criação, algumas aves eram difíceis de encontrar devido aos impactos que a área sofreu no passado. Cerca de duas décadas depois, é notável a mudança decorrente da proteção. Isso se reflete, por exemplo, na quantidade de jacus-verdadeiros. No futuro próximo, as aves que não puderam voltar pelos próprios meios terão a ajuda de conservacionistas. Quero ver papagaios, araras e periquitos voando nas encostas da Reserva. Quero ouvir as zabelês cantando de novo por lá. Nesse momento o guia terá seu maior valor na obsolescência.

AC| Na Reserva Natural Serra das Almas, quais aves mais chamam a sua atenção? E como você vê o trabalho da Associação Caatinga nesse cenário?
WG|
Há uma espécie de ave que me intriga: o caboré-acanelado. Cheguei a escrever um artigo sobre ele e me corresponder com vários estudiosos na América do Sul sobre sua biologia. Em dois outubros que estive na RNSA, pude encontrá-lo. Gostaria de saber que outros também o acharão por lá nesse mês em que comemoramos o dia da ave. Depois da publicação do guia, as aves que mais me chamam atenção são aquelas que não foram encontradas por nós, e sim pelos visitantes que chegam à região. Ficarei muito feliz quando tivermos evidências de que o arapaçu-do-nordeste está na área. Para mim, uma foto ou uma gravação terão valor totalmente diferente daquelas produzidas noutros lugares. Desde a passagem do naturalista Heinrich Snethlage em Ibiapaba (distante uma légua da RNSA), em 7 de janeiro de 1924, não tivemos provas de que essa ave ali remanesce. Não precisa completar um século sem notícias e a Associação Caatinga mostrará mais uma vez o resultado de seu trabalho.

AC| Para finalizar, gostaríamos que você falasse um pouco da sua relação afetiva com a Caatinga. Como a vivência nesse bioma influenciou suas escolhas profissionais?
WG|
Não sei se fiz as melhores escolhas, pois é provável que eu nem tivesse alguma opção além de desistir. Os significados de algumas palavras brigam entre si: como perseverança e teimosia, esperança e ilusão. Quando ganhamos a experiência para diferenciá-las, isso já não importa mais. Se a Caatinga é forte como um sertanejo, não foi por que escolheu assim, precisou ser para não perecer.

Caatinga leva pancada,
estrago lhe desfigura.
O homem deu a mancada,
o pássaro vive agrura.
Ainda terá remendo?
Trabalho será tremendo,
começando na cultura!

Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.