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No pé da Serra da Ibiapaba, em Viçosa do Ceará, Francisco Antônio de Sousa — mais conhecido como Xicu Antônio ou simplesmente Xicu — cultiva uma vida marcada pela agroecologia e pelo respeito à natureza. Graduado em Gestão Ambiental e com especialização em Agroecologia, Xicu traz consigo a agricultura como formação acadêmica, um legado familiar e uma filosofia de vida.

Desde a juventude, quando frequentava a escola Agrotécnica onde se formou, Xicu já se envolvia com práticas sustentáveis de produção. Hoje, além de ser analista de projetos socioambientais na Associação Caatinga, é um verdadeiro exemplo de como a agricultura pode ser sinônimo de sustentabilidade e prosperidade.

Em sua casa, o Sítio Recanto do Beija-Flor, Xicu e sua família adotam Sistemas Agroflorestais (SAFs) e diversas técnicas agroecológicas para cultivar alimentos saudáveis e transformar a produção rural. Por meio do beneficiamento de produtos como geleias, licores e frutas desidratadas, eles provam que é possível viver da terra de maneira sustentável, gerando renda, promovendo saúde e preservando a biodiversidade (na Caatinga e em qualquer bioma).

Para ele, a agroecologia vai além das técnicas de produção: é uma filosofia transformadora, que resgata saberes ancestrais e ressignifica a relação com a terra e os recursos naturais. Nesta entrevista, ele compartilha como os SAFs oferecem caminhos concretos para garantir segurança e soberania alimentar no semiárido.

Francisco Antônio de Sousa, mais conhecido como Xicu Antônio, é graduado em Gestão Ambiental, especialista em Agroecologia e analista de projetos socioambientais na Associação Caatinga.

Associação Caatinga | Qual a relação entre segurança alimentar, Sistemas Agroflorestais e Caatinga?

Xicu Antônio | A segurança alimentar, a saúde nutricional e a soberania alimentar estão muito ligadas às agroflorestas, que são espaços onde há produção o ano todo. É possível colher frutas, raízes, feijão, milho, hortaliças e, dependendo da família, é possível criar galinha caipira para produzir ovos e outros alimentos. Isso garante a alimentação da família e também pode abastecer outras pessoas. Além disso, há a preservação da Caatinga. Quando se cultiva uma agrofloresta, não se usa o roço e as queimadas típicas da agricultura convencional. É uma produção sem destruição.

Aí alguém pode estar se perguntando: mas o que significa agrofloresta? Agrofloresta, posso dizer de forma bem simples, que é fazer agricultura na floresta. E cada agrofloresta tem características diferentes de produção, pois vai depender do solo, da disponibilidade de água. E o mais importante: a família vai plantar a árvore que gostaria de ter e os alimentos que gosta de comer.

AC | Na prática, como a agroecologia contribui para a segurança alimentar no semiárido?

XA | A agroecologia garante alimentos limpos e saudáveis, sem prejudicar os recursos naturais. Quando como um mamão do meu quintal, sei que não tem veneno nele. E não é só um mamão: são muitos alimentos disponíveis no mesmo espaço, durante o ano inteiro. Ela pode estar no campo (nas roças agroecológicas, nos SAFs, nos quintais produtivos) e também na cidade (nos canteiros suspensos, hortas verticais, hortas comunitárias).

E tudo isso se conecta com as feiras agroecológicas e de economia solidária, que aproximam os alimentos saudáveis das pessoas e ajudam na renda das famílias. Costumo dizer que a agroecologia muda vidas. Ela transforma desde o cultivo até o consumo, passando pelo descarte consciente dos resíduos. É equilíbrio, em todos os sentidos.

AC | Quais são os maiores desafios para garantir segurança alimentar no semiárido hoje?

XA | O primeiro desafio é ampliar o acesso das famílias às tecnologias agroecológicas: quintais produtivos, SAFs, hortas orgânicas, pomares urbanos. Outro ponto é garantir a diversidade e o excedente da produção, para que os alimentos cheguem também a outras pessoas. Para isso, é essencial investir em formação técnica, apoio à produção e educação alimentar, além de assistência técnica qualificada e contínua.

Diante da crise climática, o semiárido está entre as regiões mais afetadas e, por isso, garantir segurança alimentar é uma urgência. E os sistemas agroecológicos são uma resposta concreta e viável.

Costumo dizer que a agroecologia muda vidas. Ela transforma desde o cultivo até o consumo, passando pelo descarte consciente dos resíduos. É equilíbrio, em todos os sentidos.

AC | E quais soluções você já viu darem certo em comunidades da Caatinga?

XA| Já vi muitas iniciativas se consolidarem e transformarem realidades. Um bom exemplo são os quintais produtivos. Antes, eram espaços simples ao redor das casas, geralmente cuidados pelas mulheres, com um pezinho de limão, uma bananeira, um pé de seriguela, ervas medicinais e algumas galinhas. Hoje, esses quintais são reconhecidos como tecnologias sociais, pela capacidade de produzir diversidade de alimentos, gerar renda e fortalecer a autonomia das famílias. E, além disso, deixaram de ser algo exclusivo das mulheres: cada vez mais envolvem todos os membros da família.

Outro exemplo são as agroflorestas, verdadeiras florestas de alimentos que combinam árvores nativas com espécies alimentícias e medicinais. Na minha agrofloresta, por exemplo, temos frutas variadas, batata-doce, araruta, açafrão, gengibre, madeira para pequenas construções, lenha para cozinhar, entre outros. Parte dessa produção é beneficiada, ou seja, transformada em produtos como geleias e licores, o que agrega valor e amplia as possibilidades de comercialização e conservação.

E tem também a comercialização em rede, que é quando os agricultores se organizam para vender em conjunto — seja nas feiras, seja por meio de associações, cooperativas ou centros de comercialização. Isso facilita o acesso ao mercado, aumenta a variedade de produtos disponíveis para os consumidores e fortalece a renda de quem produz.

Um exemplo disso é a Budega do Povo, em Viçosa do Ceará, uma associação de produtores e produtoras agroecológicos que existe há 24 anos e atua com assistência técnica e comercialização coletiva dos produtos de seus associados. É uma experiência inspiradora e que mostra o poder da organização comunitária.

AC | Como surgiu a ideia de viver em um sítio com um SAF?

XA | Sempre gostei da vida no campo, mas viver dentro de um Sistema Agroflorestal virou um sonho quando conheci essa prática e me apaixonei. Em 2008, consegui comprar uma área que estava bastante degradada devido ao uso intensivo da agricultura convencional.

Foi ali que decidi começar a transformação. Iniciei o processo de recuperação do solo e da vegetação e implementei uma agrofloresta. O nome do nosso espaço, Sítio Recanto do Beija-Flor, também tem um significado especial. Escolhi esse nome porque sou encantado com o beija-flor, esse pequeno polinizador que tem uma função incrível na natureza. Hoje em dia, a nossa agrofloresta já é uma experiência consolidada. Grande parte da alimentação da minha família vem do sítio.

Hoje em dia, a nossa agrofloresta já é uma experiência consolidada. Grande parte da alimentação da minha família vem do sítio.

AC | Como é a rotina de gerir um SAF em casa?

XA | Não dou conta sozinho. Depois da implantação, é preciso muito manejo: podas, plantios, capinas seletivas, colheitas, beneficiamento… cada coisa no seu tempo. Para dar conta da parte de campo, conto com mão de obra contratada por diárias, em épocas de maior necessidade de manejo. Mas, na maior parte do tempo, sou eu mesmo quem cuida. Até prefiro fazer sozinho. É muito satisfatório ver os resultados. Boa parte da colheita é feita com minha companheira, que também beneficia e comercializa em casa e nas feiras.

AC | Você usa alguma tecnologia social no seu sítio? Qual recomenda para quem quer começar?

XA| Sim, uso um sistema de reuso de águas cinzas para irrigar as hortaliças, frutíferas e a produção de mudas. Ele foi montado em 2018, depois que conheci essa tecnologia em um projeto chamado Quintais de Maria. Achei muito interessante e com um custo relativamente baixo para construção e instalação.

Construi um sistema para captar as águas das pias, da lavagem de roupas e do banho. Essas águas, que antes eram jogadas de qualquer jeito, passaram a ser filtradas e reaproveitadas para produzir outras coisas no sítio. No início, eram usadas apenas nas hortaliças, mas hoje também irrigam frutíferas e mudas, graças ao sombreamento maior do sistema.

AC | Por que os SAFs são uma alternativa viável para o semiárido?

XA| Os SAFs imitam a floresta, e, quando olhamos para a Caatinga com todas as suas potencialidades, percebemos que essa é a forma mais viável de produzir. Podemos usar espécies nativas (como cajá, umbu, maracujá-do-mato, caju), medicinais (como umburana, jucá, aroeira), adubadoras (como gliricídia e moringa) e, nos primeiros anos, plantar milho, feijão e mandioca. Isso cria um sistema resiliente, produtivo e sustentável.

Para quem quer começar um SAF, o ideal é fazer um bom diagnóstico, para então elaborar um planejamento adequado, com o apoio de um técnico. Isso é essencial para definir a dinâmica do sistema e as espécies mais adaptadas ao local.

Os Sistemas Agroflorestais (SAFs) imitam a floresta, e, quando olhamos para a Caatinga com todas as suas potencialidades, percebemos que essa é a forma mais viável de produzir.

AC | A Caatinga é vista como um bioma seco e pobre. Como você enxerga suas potencialidades alimentares?

XA | Tem muito potencial. Muitas espécies nativas alimentares da Caatinga foram esquecidas e substituídas por produtos industrializados ou por frutas exóticas de outros países. Posso citar alguns exemplos que fizeram parte da minha infância e que hoje quase ninguém mais usa: jatobá, maracujá-do-mato, cajá, oiti, ameixa amarela, araçá, mandacaru.

Reintroduzir essas espécies na alimentação é um desafio, pois a cultura imediatista da produção cria uma barreira — voltar a utilizá-las na alimentação é visto como se fosse um retrocesso para muitas pessoas. Por outro lado, podemos estudar e discutir projetos que resgatem a importância alimentícia, nutricional e cultural dessas espécies para as comunidades e povos.