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Uma viagem científica, que tinha como objetivo o estudo do rio São Francisco, mudou os rumos do conhecimento sobre as terras de Caatinga. O responsável por essa mudança foi um homem negro, nascido de um relacionamento proibido entre uma escravizada e um padre, numa época em que a escravidão e a discriminação racial estruturavam a sociedade brasileira. 

O seu nome era Teodoro Sampaio. Entre 1879 e 1880, a serviço da Comissão Hidráulica, ele acompanhou a expedição desde a foz do rio São Francisco (AL) até Pirapora (MG), completando um percurso de 2.700 quilômetros. Como exímio desenhista e escritor, começou a publicar os resultados vinte anos depois dessa viagem. Atualmente, esses textos encontram-se reunidos no livro O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. 

Os seus relatos nos fazem notar encantos e dissabores do interior nordestino, especialmente na extensão de Alagoas e Bahia. Mesmo após meses atravessando a Caatinga, numa viagem extenuante entre vapores e lombos de muares, ele não deixou de se surpreender com a paisagem que, em suas palavras, “por vezes, é tão bela como um parque ou jardim natural”. 

Do chão da senzala ao topo da engenharia
Teodoro Fernandes Sampaio nasceu em 1855, no recôncavo baiano. Sua mãe, Domingas da Paixão, era escravizada no engenho Canabrava, localizado nos arredores de Santo Amaro (BA). Seu pai era o padre Manoel Fernandes Sampaio, de quem recebeu a alforria e o sobrenome.  

Diferentemente da imensa maioria dos nascidos nessa condição, Teodoro contou com a ajuda do pai. Prestes a completar 10 anos de idade, foi mandado a São Paulo e, pouco depois, ao Rio de Janeiro, onde permaneceu e concluiu o curso de engenharia civil na Escola Politécnica. Apesar de ser um homem livre e de ter impressionantes habilidades para as engenharias, letras e artes, Sampaio não teve vida fácil, pois experimentou as amarguras do preconceito por causa da cor de sua pele. 

Quando, em 1879, formou-se a Comissão Hidráulica para o estudo de portos e rios brasileiros sob o governo imperial, o jovem engenheiro, na altura dos seus 24 anos, foi convidado para integrá-la. Porém, ao ser publicada no Diário Oficial a lista dos técnicos nomeados, o seu nome estava ausente. O responsável pela publicação havia lhe excluído por achar chocante que um “homem de cor” fizesse parte de uma comissão liderada por norte-americanos. O erro foi reparado e Teodoro Sampaio tornou-se o mais habilidoso engenheiro brasileiro a compor a expedição rumo às terras caatingueiras do rio São Francisco. 

Um imenso e inesgotável tesouro 
Após atravessar a Bahia sobre as águas do São Francisco, já se encontrando na cidade de Carinhanha, Sampaio tomou as seguintes notas: “O rio é um enorme viveiro, onde o peixe não escasseia jamais, assim como as Caatingas e as matas marginais [formam] um imenso e inesgotável tesouro”. Reconhecia, assim, as riquezas naturais daquela região. 

Dias antes, entre Urubu (atual Paratinga) e Bom Jesus da Lapa, já havia notado outros aspectos surpreendentes da paisagem, como, por exemplo, ao se deparar com esplendorosas barrigudas, árvores endêmicas da Caatinga:

Durante os dois dias que aqui permanecemos recolhendo combustível, levamos os nossos passeios pela Caatinga até vermos a mata interior mais distante. Tivemos ensejo de ver então um extraordinário grupo de cinco gigantescas barrigudas com os seus troncos prodigiosamente inflados e os galhos e ramagens entortados ou disformes, do mais pitoresco e esquisito efeito.” Tal aspecto “esquisito”, conforme ele escreveu, era uma maneira de tentar aplacar, no espírito do cientista, todo aquele encantamento inesperado. 

Mas nem sempre o tom de entusiasmo se imprime em suas notas. Pelo contrário, por diversas vezes, Sampaio percebeu as consequências das secas e a “monotonia” de certas áreas de Caatinga. Isso se explica não pelos estereótipos que ao longo da história foram associados ao bioma, mas sim pela pouca variação da vegetação e do relevo em longos trechos da viagem. Além disso, deve-se levar em conta que, para um viajante do século XIX que passou meses em territórios desconhecidos sobre lentos meios de transporte, era inescapável que o cansaço também interferisse nas suas percepções.  

A contribuição desses relatos de viagem foram e ainda são fundamentais para uma compreensão mais aprofundada da geologia e da flora da Caatinga. Serviram de base para os estudos de Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, dentre outros intelectuais de peso. Mas, sobretudo, os escritos desse homem que desafiou os olhares sobre si mesmo e sobre a paisagem do interior nordestino nos convidam a apreciar, de perto, a exuberância do bioma tão resistente quanto o engenheiro nascido na senzala. Parafraseando o próprio Sampaio ao avistar e sentir a cachoeira de Paulo Afonso, a Caatinga vê-se, sente-se, não apenas se descreve. 

Fonte consultada:
Sampaio, Teodoro. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. Organização e introdução de José Carlos Barreto de Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 


Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.