“Dá-se esta fruta ordinariamente pelo sertão, no mato que se chama a caatinga”. Com essas palavras, o viajante e colonizador português Gabriel Soares de Sousa fez um dos primeiros registros, em língua portuguesa, da Caatinga e de um dos seus frutos mais preciosos, o umbu. Encontrava-se no interior baiano, “afastado vinte léguas do mar”, conforme escreveu, quando se deparou com árvores de umbuzeiro. Interessado em explorar a natureza dos sertões adentro, Sousa percorreu o interior brasileiro e elaborou um extenso relato que veio a público somente no século XIX, quando o Brasil já tinha alcançado a independência. Sob o título Tratado descritivo do Brasil em 1587, esse relato revela as riquezas guardadas no interior do território, entre as quais se destacam a singularidade de árvores e frutos da Caatinga.
Um registro colonial da Caatinga
Tendo chegado a Bahia por volta de 1570, com menos de vinte anos de idade, Gabriel Soares de Sousa fez fortuna com a produção e o comércio do açúcar e logo se estabeleceu numa posição importante em Salvador. Mas o impulso aventureiro foi mais forte, levando-o para léguas além da capital colonial.
Do relato que resultou dessa viagem, a palavra Caatinga aparece pelo menos duas vezes: quando aborda as “árvores de fruto, começando nos cajus e cajuís”, e, logo depois, quando trata “da árvore dos umbus, que se dá pelo sertão da Bahia”. No primeiro caso, diz que o caju “é avantajado no cheiro e sabor”, enquanto o cajuí tem “maravilhoso sabor com pontinha de azedo, e criam também sua castanha na ponta, as quais árvores se não dão ao longo do mar, mas nas campinas do sertão além da Caatinga”. No segundo caso, destaca a ocorrência do umbu “no mato que se chama a caatinga, que está pelo menos afastado vinte léguas do mar, que é terra seca, de pouca água, onde a natureza criou a estas árvores para remédio da sede que os índios por ali passam”.
Durante todo o período colonial, o relato de Sousa permaneceu restrito a poucos olhos, como foi o caso de muitos relatos de viagem sobre a colônia brasileira. O motivo dessa restrição consistia em manter afastada a cobiça de outros povos colonizadores. Por isso que tais escritos foram editados e publicados somente em 1851, anos depois da independência. Nas páginas finais, os editores inseriram uma definição da Caatinga (na época grafada como “Catinga”), cujo significado ainda era pouco conhecido: “A palavra caatinga no sentido de mato carrasquento ou charneca de moutas e matagaes é de origem indígena e deriva de ca e tinga, mato brancacento.” Podemos dizer, assim, que os registros de Sousa contribuíram para o conhecimento e a denominação do que foi compreendido, posteriormente, como bioma.
Do fruto às raízes que matam a sede
Embora tenha sido escrito através de um olhar colonizador, que vê a natureza como algo a ser desbravado e explorado, o relato de Gabriel Soares de Sousa revela dimensões ecológicas que podem ser lidas ao revés dos propósitos coloniais. Nesse sentido, a descrição que faz ao degustar o umbu é fascinante. Tendo na boca um sabor completamente novo, ele procura fazer comparações com gostos já conhecidos dos europeus: “Dá esta árvore umas flores brancas, e o fruto, do mesmo nome, do tamanho e feição das ameixas brandas, e tem a mesma cor e sabor, e o caroço maior”.
Mais fascinante ainda é a maneira como ele relata os usos que os indígenas faziam das raízes do umbuzeiro: “Esta árvore lança raízes […] redondas e compridas como batatas, e acham-se algumas afastadas da árvore cinquenta e sessenta passos, e outras mais ao perto. E para o gentio [indígena] saber onde estas raízes estão, anda batendo com um pau pelo chão, por cujo tom o conhece, onde cava e tira as raízes de três e quatro palmos de alto, e outras se acham à flor da terra, às quais se tira uma casca parda que tem, como a dos inhames, e ficam alvíssimas e brandas como maçãs de coco; cujo sabor é mui doce, e tão sumarento que se desfaz na boca tudo em água frigidíssima e mui desencalmada; com o que a gente que anda pelo sertão mata a sede onde não acha água para beber, e mata a fome comendo esta raiz, que é mui sadia, e não fez nunca mal a ninguém que comesse muito dela.”
Gabriel Soares de Sousa provou não apenas a fruta, mas também se deliciou com as águas das raízes do umbuzeiro. Muito antes do colonizador português, os indígenas já eram íntimos dessa árvore tão típica da Caatinga. O conhecimento que vem do horizonte do tempo, preservado pelos caatingueiros, nos revela que cada umbuzeiro produz frutos com sabores muito singulares. É o sabor da Caatinga que nunca deixa de surpreender.
Fonte consultada:
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. Disponível em: https://fundar.org.br/publicacoes/biblioteca-basica-brasileira/tratado-descritivo-do- brasil-em-1587/
Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.