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Flávia Miranda fala sobre coronavírus e meio ambiente

O país parou. Grande parte dos brasileiros está de quarentena em casa e quem tem obrigação de sair, o faz, ou devia fazer, com todos os cuidados indicados por organizações nacionais e internacionais: higiene das mãos, distância social e evitar tocar o rosto. Tudo isso por causa de um pequeno agente infeccioso que mudou nossas vidas do dia para a noite; o Covid-19.

Neste exato momento, pesquisadores buscam alguma fórmula para combater o coronavírus (nome popular) e devolver a normalidade às nossas vidas. Mas, enquanto isso não ocorre, um questionamento perpassa nossas cabeças: “de onde essa doença surgiu?” Provavelmente a resposta para essa pergunta está diretamente ligada às ações do ser humano contra a natureza.

A origem do Covid-19 ainda é incerta, mas estudos indicam que a doença chegou aos humanos através de animais. O vírus teria se adaptado a tal ponto que conseguiu “pular” de uma espécie silvestre para homens e mulheres. Esse tipo de enfermidade é recorrente na história e tem, inclusive, um nome científico: as chamadas zoonoses.

São muitos os exemplos de zoonoses que já atingiram a humanidade: a gripe aviária surgiu a partir de frangos; o ebola despontou de morcegos e a AIDS de macacos. Já em relação ao COVID-19, pesquisas científicas sugerem dois animais como os prováveis elos entre a doença e os humanos: os morcegos e os pangolins (mamíferos semelhantes ao tatu-bola).

Apesar da falta de certezas, a provável origem do coronavírus levanta uma reflexão que mexe com a pauta ambiental. Cientistas apontam que habitats degradados podem acelerar processos evolutivos e essas mudanças têm a capacidade de diversificar doenças, já que os patógenos, em geral, espalham-se facilmente  e têm um alto poder de mutação.

Nesta entrevista, feita por telefone, na sexta-feira (27), a médica veterinária Flávia Miranda, doutora professora da Universidade Estadual de Santa Cruz e coordenadora do Instituto Tamanduá, falou à Associação Caatinga sobre a relação do coronavírus e de outras doenças com a degradação do meio ambiente e o consumo e manejo inadequado de animais silvestres. Para ela, refletir sobre a degradação de habitats naturais é de fundamental importância para superar a crise atual e impedir o surgimento de novas.

 

 

Associação Caatinga | Qual a principal hipótese de origem do coronavírus?

Flávia Miranda | Eu trabalho com medicina da conservação, então eu trabalho com essa questão da transmissão de doenças de animais selvagens para o ser humano e vice-versa. Mas a questão do consumo de carne e coronavírus está totalmente associada, Uma das hipóteses é o consumo de morcegos ou pangolins; ainda estão procurando o DNA, mas está totalmente associado.

 

AC | Além do coronavírus, já houve outras doenças que passaram de animais para humanos, como, por exemplo, a gripe aviária e a “doença da vaca louca”. Você pode explicar  um pouco sobre essas doenças, conhecidas como zoonoses?

FM | As zoonoses são doenças infecciosas capazes de serem naturalmente transmitidas entre seres humanos e animais e que podem desencadear infecções por microorganismos, bactérias, vírus e fungos. É importante saber que a gente tem que ter um cuidado com a manipulação de animais selvagens. Consumo nem se fala, é proibido por lei caçar e consumir animais selvagens.

E existe toda uma questão ambiental relacionada a isso porque hoje a gente tem espécies ameaçadas de extinção por causa da caça. E nesse aspecto, a fauna tem um papel muito importante na manutenção da saúde do meio ambiente porque quanto mais equilíbrio a gente tiver entre fauna, flora e o ser humano, menos chances de epidemias vamos ter. Acho que o segredo de um bom convívio entre a terra e o ser humano é esse equilíbrio.

 

AC | Como é a realidade do Brasil em relação ao consumo de animais silvestres?

FM | No Brasil, o consumo de carne de animais selvagens é frequente, principalmente em áreas menos favorecidas. E isso é um grande problema, pois já temos várias doenças que vêm de origem de animal e vice-versa. A gente tem a leishmaniose que vem de tatus, por exemplo. Mas que fique bem claro que é a questão do consumo, não da existência do animal, no Peru está tendo uma quantidade de mortalidade de morcegos porque as pessoas estão matando os bichos vivos porque acham que ele transmite, mas é a questão do consumo mesmo.

 

AC | Em um momento atual, onde uma zoonose virou uma pandemia, como sensibilizar as pessoas que o animal silvestre não é um inimigo que precisa ser abatido como está acontecendo no Peru?

FM |É muito difícil sensibilizar as pessoas em um momento desses de pandemia. Eu acredito que a sensibilização vem da ciência e dos pesquisadores mostrando realmente a importância dessas espécies, da manutenção dessas espécies, inclusive na saúde ambiental. A gente estava falando sobre morcegos; morcegos são grandes dispersores de sementes, polinizadores e são uma das espécies mais importantes para a manutenção da saúde do meio ambiente. Então não tem o que falar, é a educação mesmo, mostrar para a sociedade a importância disso. Também é necessário que os governantes que têm realmente voz perante a massa  tenham consciência e falem em prol dos animais, o que está difícil hoje.

 

“Conhecer para preservar, aquele velho jargão que eu acho muito importante. Se a gente conhece realmente a importância das espécies, a gente consegue dar valor.”

 

AC | Você citou que o consumo de animais silvestres é mais frequentes em áreas menos favorecidas. Por quê?

FM | O consumo de animais silvestres atinge mais os não favorecidos por uma questão financeira. Muita gente não tem como se alimentar e realiza a caça de subsistência. Então é muito comum no Brasil, onde grande parte da população ainda passa fome. É muito importante que a gente tenha isso em mente. Uma outra coisa é a questão cultural, tem muita gente que gosta de caça. Por exemplo, o tatu-galinha tem esse nome, pois o sabor dele parece com a carne de galinha e as pessoas pagam por ele, pessoas que têm dinheiro para consumir essa espécie. Lembrando que a caça é proibida, é crime, então eu acho que tem que deixar isso bem marcado.

 

AC | E como podemos afastar as pessoas menos favorecidas do consumo de carne?

FM | É uma questão mesmo econômica. O Brasil é um país grande onde temos uma quantidade de pessoas passando fome e necessitando de emprego. A melhor forma de lidar com essa situação é realmente geração de renda. Trabalhos com comunidade, geração de renda, educação e só assim a gente vai conseguir diminuir o consumo de animais selvagens por comunidades menos favorecidas. A questão cultural é diferente e é um outro desafio, você tem que trabalhar mesmo com a explicação sobre a questão das espécies e da preservação. É um trabalho mais educacional.

 

AC | Já no caminho para o fim dessa entrevista, Flávia, qual rumo podemos tomar para impedir novas crises como a que vivemos hoje?

FM | Uma das coisas que eu acho interessante é que os animais selvagens mantêm o equilíbrio da saúde ambiental, os morcegos têm papel fundamental para manter a saúde do ecossistema, eles são polinizadores e dispersores de sementes, assim como toda a fauna tem um papel, que a gente chama de cadeia trófica para manter o ambiente saudável. A gente precisa manter esses animais lá e precisa manter essa floresta em pé porque quanto mais a gente desmata, mais a gente entra em áreas que não são nossas e que têm bactérias, vírus e fungos, assim como animais que estão lá e que a gente não conhece.

 

“Quanto mais a gente adentrar às florestas, mais riscos a gente vai correr em relação às zoonoses e pandemias, o mais importante é a gente reconhecer que a saúde do ecossistema é a nossa saúde também, preservar a fauna brasileira é também preservar os brasileiros”.

 

AC | O que vai acontecer se continuarmos a desmatar e derrubar a floresta em pé? É possível que novas doenças apareçam?

FM | A floresta em pé é super importante, porque dentro de uma floresta tem todo um ecossistema, tem toda uma cadeia trófica e essa cadeia é mantida por várias espécies de fauna e flora, então quando ela entra em desequilíbrio é que há o grande problema. O que está acontecendo é isso, uma degradação ambiental onde a gente está a cada dia mais invadindo uma área preservada, invadindo florestas sem conhecer. Então assim como a gente tem tamanduás, onças, tatu-bolas, diferentes árvores, diferentes plantas, a gente também tem uma quantidade enorme de vírus, bactérias e fungos que são desconhecidos para a saúde humana. Quanto mais a gente adentrar às florestas, mais riscos a gente vai correr em relação às zoonoses e pandemias, o mais importante é a gente reconhecer que a saúde do ecossistema é a nossa saúde também, preservar a fauna brasileira é também preservar os brasileiros. Somos parte, somos primatas, somos parte da floresta, somos parte desse meio ambiente, nós estamos há muito tempo dissociados da natureza, como se a natureza fosse uma coisa e o ser humano outra, somos todos natureza; dependemos da água, luz, consumo e ar. Tudo isso que vem de um ambiente só. Quanto mais  a gente entender a importância de manter esse ambiente saudável melhor a gente vai ficar, quando mais saudável a biodiversidade estiver, mais saudável nós estaremos.