Em 5 de outubro comemora-se o Dia Mundial da Ave. Datas como essa são importantes para celebrar a diversidade da avifauna fundamental nos ecossistemas de diferentes biomas. No caso da Caatinga, não são poucas as espécies que por ela transitam e a colorem.
Como a Caatinga é múltipla e variada em termos de fauna e flora, a depender de onde se encontra, o observador, interessado em desvendar tal multiplicidade, pode surpreender-se diante de aves com os mais diversos tamanhos e cores. Na Serra do Pará, por exemplo, localizada no município de Santa Cruz do Capibaribe, no agreste pernambucano, há uma abundância de beija-flores que aumenta nas estações chuvosas.
Foram as guildas e as dinâmicas temporais desses beija-flores (Aves: Trochlidae) que chamaram a atenção de Flor Maria Guedes Las Casas, atualmente professora da Universidade Estadual do Maranhão. A professora Las Casas tem uma trajetória interessante dentro dos estudos ornitológicos. Criada em Brasília, começou sua carreira de pesquisadora estudando aves do Cerrado, quando cursava Ciências Biológicas. No entanto, o desejo de aventurar-se pela diversidade das terras brasileiras levou-a a Pernambuco. Foi ali, na Universidade Federal de Pernambuco, que tomou contato com um grupo de pesquisadores atuantes no estudo da avifauna da Caatinga, em torno do professor Severino Mendes de Azevedo Junior. E foi a partir dali que começou, no ano de 2007, uma história de contatos perenes com beija-flores e suas fascinantes dinâmicas ecológicas.
Neste Papo Catingueiro, que celebra o Dia das Aves, Flor Maria Las Casas fala um pouco sobre essa duradoura relação com a Caatinga e, em especial, com os beija-flores.
Associação Caatinga| A sua trajetória acadêmica começa em Brasília, em pleno Cerrado. São de lá suas origens? Como despertou o seu interesse pelo estudo de aves?
Flor Maria Las Casas| Sim, sou brasiliense. Fiz graduação em Ciências Biológicas (Licenciatura), e foi na graduação que a minha paixão pela pesquisa com aves começou. Eu era graduanda quando entrei como voluntária no Zoo de Brasília. Lá comecei com pesquisas em ecologia de comunidades de pequenos mamíferos, até que surgiu a oportunidade de participar de um projeto com uma espécie ameaçada, a tiriba-de-pfrimer (Pyrrhura pfrimeri), espécie endêmica das matas secas do Goiás. Minha monografia foi, inclusive, com padrões de endemismo em aves do Cerrado. Até então, havia dedicado o meu tempo na graduação para estudar o Cerrado.
AC| E de que maneira se construiu sua ligação com o Nordeste e com a Caatinga?
FMLC| Começou com um desejo pessoal de querer ir para outro lugar, deslumbrar novas oportunidades, lugares… Em 2006, decidi ir para Pernambuco com o meu parceiro, tentar novos ares. Estávamos sem perspectiva na época. Quando cheguei nesse estado, fui até a Universidade, pois meu sonho era ser professora e pesquisadora. Então, lá procurei saber sobre quem trabalhava com aves na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
AC| Foi na UFPE que nasceu o seu interesse pelos beija-flores da Caatinga?
FMLC| Isso, foi aí que a minha história com os beija-flores começou. O professor Azevedo-Junior, na época, tinha um laboratório e queria alguém na equipe para estudar os beija-flores, grupo pouco pesquisado na região Nordeste, especialmente na Caatinga. Vieram perguntas tais como: quais são as espécies de beija-flores que podemos encontrar em determinada localidade? Tem alguma espécie sazonal, ou seja, que só aparece na chuva? Quais espécies de flores que eles visitam? Polinizam? Como é a fenologia de floração dessas espécies, isto é, quais florescem e quando? Há espécies que só florescem em determinada época do ano? Como esses beija-flores partilham o recurso? Qual o padrão de riqueza das espécies de beija-flores? Fatores ambientais como temperatura, precipitação, oferta de recurso alimentar (flores e artrópodes no caso dos beija-flores, que também se alimentam de pequenos insetos, aranhas etc.) afetam a ocorrência e abundância das espécies? Ou seja, desses fatores, qual ou quais deles são mais importantes para explicar as diferenças na composição das espécies? É preciso dizer que os beija-flores estão entre os polinizadores vertebrados mais importantes que temos. Eles polinizam uma alta variedade de plantas, voam muito, então conseguem ir para áreas distantes. E, dessa forma, auxiliam na reprodução das plantas e, consequentemente, na manutenção das florestas. Depois do mestrado na UFPE, veio o doutorado na UFSCAR, em ambos estudando a ecologia desse grupo fantástico, nossas joias.
“Os beija-flores estão entre os polinizadores vertebrados mais importantes que temos.”
AC| Neste outubro celebramos o Dia Mundial da Ave. Como você vê o atual estado dos estudos das aves da Caatinga dentro do campo da Ornitologia no Brasil?
FMLC| Está crescendo. Hoje temos muitos pesquisadores estudando Ecologia, história natural, biogeografia, interações. Ainda temos muito o que conhecer, em termos de áreas, padrões de ocorrência, distribuição, mas já avançamos muito nos últimos vinte anos.
AC| Voltando aos beija-flores, há ameaças à conservação dessas aves no semiárido de Pernambuco? Caso existam, quais seriam essas ameaças?
FMLC| As ameaças aos beija-flores são as mesmas que afetam toda a biota: perda de hábitat, de florestas, alterações climáticas, com o aumento da temperatura e diminuição das chuvas. Essas alterações não são positivas em nenhum bioma para nenhuma espécie, mas na Caatinga são mais agravantes, uma vez que ela já vem passando por processos históricos de retirada de vegetação e alteração da paisagem original, desertificação e alterações nos regimes de chuva, num ambiente onde a escassez hídrica já é um fator naturalmente limitante. E ainda as mudanças climáticas alteram a fenologia reprodutiva das plantas e, consequentemente, os seus polinizadores.
AC| Como a sociedade de maneira geral e, em especial, os habitantes da Caatinga podem contribuir para a preservação dessas aves?
FMLC| Esse é um assunto muito complexo, porque estamos falando de uma região dominada por populações de baixa renda, que precisam sobreviver e tirar o seu sustento, sem muitas oportunidades e desenvolvimento econômico sustentável. Essa missão é para os gestores, articuladores e governos municipal, estaduais e federal. Antes de tudo, é necessário investir em educação e alternativas de renda para subsistência.
AC| Chamou a nossa atenção o projeto em que esteve envolvida sobre a dispersão de sementes por aves em Cactaceae na Caatinga. Sobre isso, qual a importância das aves para a ecologia desse bioma, especialmente para a reprodução de plantas?
FMLC| O projeto com as Cactaceas foi objeto de estudo de uma aluna de monografia. A parte de frugivoria é dispersão de sementes. Era uma curiosidade que tínhamos, pois existem poucos estudos e pouquíssima informações a respeito. Então, durante o meu pós-doutorado (na UFPE), apareceu uma aluna que queria trabalhar com frugivoria e sugeri a ela que estudasse as Cacataceas, uma vez que os dados eram escassos. Na verdade, ainda existem muitas questões sobre as espécies potenciais que dispersam sementes importantes para a restauração e manutenção das florestas. Os beija-flores, que são polinizadores, carregam o pólen das flores e permitem a fecundação das mesmas para dar origem aos frutos, que carregam as sementes, por sua vez, vitais para a manutenção das florestas.
AC| Concorda, então, que estudos como esse ajudam a mudar o imaginário que toma a Caatinga como paisagem árida e pouco diversificada?
FMLC| Certamente. A Caatinga é rica em espécies de aves, tem sim a sua representatividade, com espécies endêmicas, que só existem na Caatinga, algumas até com distribuição bem restrita a determinados habitats, espécies residentes, migratórias…
AC| Atualmente, na Universidade Estadual do Maranhão, quais são seus interesses de pesquisa? Continua mantendo trabalhos relativos às aves da Caatinga?
FMLC| Atualmente, aqui no Maranhão, estou trabalhando com aves de áreas úmidas, com especial enfoque nas aves costeiras e marinhas, etnoornitologia e educação ambiental, usando as aves como ferramenta pra sensibilizar e tentar mostrar para as novas gerações como as aves são importantes para a manutenção das florestas e qualidade de vida. Aqui no Maranhão, a cultura da caça e de criar aves silvestres como animal de estimação é ainda muito comum. Estamos falando de um estado com baixíssimo IDH e altas taxas de desmatamento. Dessa forma, a Universidade tem um papel fundamental com a sociedade, não só com a formação de profissionais qualificados, mas atuante na educação, conscientização, através de ações de extensões e pesquisas científicas, que geram conhecimentos científicos e podem, ou melhor, devem auxiliar as políticas públicas locais, regionais e estaduais. Mas minhas pesquisas na Caatinga continuam, tenho alunos estudando aves migratórias. Continuo com estudos voltados ao entendimento das perturbações antrópicas sobre a avifauna da Caatinga, com enfoque também no ciclo de mudas e atividades reprodutivas.
Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.
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