Skip to main content

Gislene Ganade: “Restaurar áreas desertificadas é como curar uma ferida da terra”.

A professora Gislene Ganade andava pelo Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte quando notou um aspecto curioso de uma de suas plantas: o tamanho do tronco e das folhas da espécie eram pequenos quando comparados ao comprimento da raiz. E foi desse momento de simplicidade que surgiu uma técnica inovadora que pode transformar regiões desgastadas em florestas. Em média, a estratégia eleva de 30% para 70% a taxa de sobrevivência de espécies de plantas nativas da Caatinga.

A técnica, criada pela Laboratório de Ecologia da Restauração (LER), do qual Gislene é coordenadora, consiste em utilizar canos de PVC como vasos. Plantas nativas da Caatinga são germinadas nesses reservatórios que têm pequenas bolsas de água no fim. Então, após um período em estufa, as raízes das espécies atingem um metro de extensão e são levadas para o local de plantio, quando o cano é retirado.

O trabalho começou há sete anos, em uma área de 3,5 hectares da Floresta Nacional de Açu, no interior do Estado do Rio Grande do Norte. Hoje a região mostra o resultado do esforço do grupo de pesquisadores do laboratório: o que era um local vazio, pobre e seco, transformou-se em uma floresta diversa. Além disso, o LER recebeu o certificado “Dryland Champions Brasil”, honraria entregue pela Organização das Nações Unidas e Ministério do Meio Ambiente. Mas para Gislene, o projeto ainda pode muito mais: a ideia da doutora é transformar o canteiro em uma floresta escola.

Nesta entrevista, feita por telefone, na terça-feira (16), a professora doutora Gislene Ganade explicou à Associação Caatinga os detalhes e desafios da técnica.

 

 

ASSOCIAÇÃO CAATINGA | Por que estudar técnicas de restauração de áreas desertificadas? Qual a importância desse tema para a Caatinga?

GISLENE GANADE | Restaurar áreas desertificadas é como curar uma ferida da terra e uma vez que você tem uma área que foi muito utilizada no sistema semiárido de pastejo, corte de vegetação e com alta salinidade do solo, fica muito difícil para as plantas voltarem a se estabelecer naturalmente nessas áreas. Então, ao restaurar aquela área, você pula o passo daquela plantinha que tem que chegar em um ambiente ultra seco e conseguir água dali, já que o sal do solo faz com que ela não consiga puxar água, além da presença de alguns elementos tóxicos. Então utilizamos uma técnica que possibilite a planta pular o estágio mais sensível para ela conseguir se estabelecer ali e assim a gente recompõe a estrutura do solo: as plantas fixam nitrogênio e conseguem, com mais facilidade, puxar água do fundo para a superfície, ou seja: várias características que ajudam o solo a se recuperar. E ao tratar essa ferida, você impede que ela cresça, porque a tendência de uma área seca é que ela fica ainda mais seca e salinizada. É um processo de combate à desertificação e, futuramente, isso vai gerar um novo ciclo de água e qualidade de solo melhor para aquela área, propiciando até o plantio da maneira adequada.

 

AC | Um dos métodos de reflorestamento estudados pelo Laboratório de Ecologia da Restauração envolve o uso de canos de PVC na hora do plantio. Explica para a gente como funciona esse método e por qual motivo ele é tão eficiente.

GG | A ideia dos canos surgiu de forma interessante. Eu estava com um aluno olhando algumas plantas pequenas, mas quando cavávamos, as raízes delas eram enormes, o que é uma característica evolutiva das espécies: investir muito em raízes para encontrar água mais facilmente. Então desenvolvemos a possibilidade de usar raízes grandes com esses canos de PVC de um metro de comprimento cortados ao meio. A ideia do corte vertical dos canos é que você pode os abrir, mas também usá-los como vasos. Aí você planta a espécie nesse “vaso” e elas conseguem crescer rapidamente e em poucos meses a raiz já está lá embaixo porque você coloca a água na parte de baixo do cano e a planta procura a água. Então na hora de plantar a espécie no campo, ela já vai ter um porte maior porque ela se desenvolveu bem na parte do tronco e da folha e, ao mesmo tempo, ela tem uma raiz que sustenta esse porte maior, pois se a planta é enorme e a raiz pequena, ela não vai conseguir absorver água o suficiente para se sustentar.

Então a gente coloca a planta em um buraco de um metro de profundidade com água no fundo e depois cobre tudo de terra e puxa de volta, ou seja, a gente pode reutilizar os canos e a raiz fica em contato direto com a terra e a água. Mas por que esse método é mais eficiente? Porque a planta consegue chegar na natureza em uma situação que ela tem grandes reservas de glicose, amido e água. Aí, se na hora que ela chega ao solo, ela encontra um ambiente difícil, ela pode perder as folhas e esperar até que as chuvas venham, ela é forte o suficiente para não morrer nesse período de espera.

 

 

 

 

AC | Fala um pouco sobre as áreas restauradas pelo projeto. Quais os resultados da transformação da região que foi restaurada a partir desse método? 

GG | Trabalhamos na Floresta Nacional de Açu, aqui no Rio Grande do Norte e essa área ficou muito tempo sendo utilizada por agricultura e pastejo. Nas proximidades da área há a Lagoa do Piató, que é uma lagoa muito salinizada, então a gente tem problemas com a quantidade de sais no solo. E, por isso, temos evidências que alguns tipos de irrigação podem prejudicar ainda mais essa condição. Mas, explicando melhor: essa área foi usada para a agricultura, para pastejo e ela ficou por décadas nessa situação, se você olhasse na estação seca, ia ver a área completamente aberta, o solo exposto, sem nenhum estabelecimento de árvores. Então a gente pensou que esse local seria ideal para trabalharmos com nossa técnica. E até agora tivemos resultados muito interessantes: as plantas conseguiram crescer e produzir uma biomassa.  Outra coisa interessante para ser dita é que trabalhamos com as chamadas plantas facilitadoras, que são espécies “enfermeiras”. A gente fez testes de 20 plantas desse tipo e, a maioria, é capaz de melhorar o ambiente para que outras plantas cheguem e, além disso, elas melhoram o ambiente para outros níveis tróficos, como animais e insetos que dependem dessas plantas para viver. Então essas espécies facilitadoras melhoram a produção de biomassa no ambiente da caatinga. Depois de algum tempo, também encontramos sinais de outros organismos, como tatus, que inclusive estão comendo as raízes das nossas plantas. Muitos pássaros também e marcas de veados. Enfim, uma mudança muito grande na fauna com base nas nossas árvores.

 

 

AC | E é possível replicar essa técnica e seus resultados em outros locais, como, por exemplo, em locais que não têm acesso tão direto ao aparato da universidade?

GG | Com certeza é possível replicar essa técnica em outros locais, inclusive a gente já vem fazendo alguns testes na Serra do Catimbau, em Pernambuco. Também temos contato com uma professora da Universidade Federal do Ceará que está aplicando essa técnica em um projeto. Além disso temos duas aplicações sucedidas para empresas.Teve uma ligada a um reflorestamento da Petrobras, que foi em uma área de mineração e parte do trabalho foi feito com essa técnica. E também é importante dizer que essa técnica não precisa de irrigação, porque quando você tem que irrigar é preciso todo um aparato, mas com essa técnica é possível plantar inclusive na seca, só é necessário irrigar no momento do plantio. Isso ajuda a expandir a estratégia para mais áreas. Um outro exemplo que a gente teve foi uma empresa aqui do Rio Grande do Norte que teve que fazer um replantio e os auxiliamos com essa técnica de forma sucedida. Plantamos as mudas em uma área completamente degradada e depois de alguns dias, aos invés de morrer, elas estavam produzindo folhas. Então é possível sim aplicar essa estratégia em locais onde não há estrutura de irrigação direta para as plantas, em áreas ermas. O fundamental é produzir as mudas, levá-las para  a região e ir com um caminhão pipa que vai ajudar a colocar a água dentro dos buracos de um metro.

 

“Com certeza é possível replicar essa técnica em outros locais , inclusive a gente já vem fazendo alguns testes na Serra do Catimbau, em Pernambuco. Também temos contato com uma professora da Universidade Federal do Ceará que está aplicando essa técnica em um projeto.”

 

AC | Mas vamos falar também sobre o lado difícil. De modo geral, quais as maiores complicações que o laboratório encontrou para desenvolver esse método e restaurar essas áreas?

GG | Um problema que encontramos a longo prazo foi a salinidade do solo. Por exemplo o cumaru, que é uma espécie ameaçada na Caatinga porque não está conseguindo superar o processo de salinização que está ocorrendo. Então, nosso cumaru, por incrível que pareça, teve 45% de sobrevivência no primeiro ano, mas ao longo do tempo ele foi perdendo muita sobrevivência, acredito que seja por causa da competição com as espécies de gramíneas da região e pela salinidade do solo. Algumas espécies sofrem mais, mas o positivo é que temos as espécies facilitadoras que crescem sem muitos problemas e melhoram o ambiente para a chegada das plantas mais frágeis. Alguns exemplos de espécies facilitadoras: jurema-preta, jurema-branca, algodão, imburana, ipê e juazeiro.

 

AC | E, para finalizar, o que a senhora falaria para jovens cientistas que desejam estudar desertificação/restauração da caatinga?

GG | A minha primeira fala para jovens cientistas seria: acreditem. Acreditem porque o ser humano já conseguiu resolver tantas coisas no mundo e é só a gente se jogar de corpo e alma em algo que a gente consegue realmente avançar e resolver, usando as técnicas corretas da ciência. Tenho vários jovens trabalhando comigo e são pessoas que cresceram demais durante todos esses anos e eles têm dentro deles essa certeza: que você pode botar a cara, testar, ir aprendendo e acreditar que você pode chegar realmente a combater a desertificação nessas áreas secas. Tem muita coisa que pode ser feita e estamos no caminho certo. Acreditem e vão em frente, que, com certeza, podemos chegar lá.