Em dezembro de 1968, quando a espaçonave Apollo 8 orbitava a Lua, o astronauta William Anders eternizou a imagem do nosso planeta numa fotografia que ficou conhecida como Earthrise, o “nascer da Terra”. Nela, a Terra aparece parcialmente iluminada, flutuando no espaço, como se fosse formada por pinceladas de azul e branco concentradas num semicírculo perfeito e vibrante em meio à escuridão sideral. Desde então, essa imagem tornou-se emblemática em movimentos políticos, sociais e ambientais que reivindicavam a preservação do planeta.
Nas décadas seguintes, intensificou-se o número de satélites lançados no espaço com variados objetivos. O engenheiro agrícola José Galdino de Oliveira Júnior destaca os primeiros satélites da série Landsat como marco inicial, nos anos 1970, de uma jornada de pesquisas sobre recursos naturais em que o uso de imagens de satélites ampliou as possibilidades de conhecimento. Atualmente, tais imagens são largamente usadas em estudos que lançam mão de técnicas de sensoriamento remoto e de geoprocessamento para diversos fins. Nas palavras de Oliveira Júnior, essas técnicas “podem diminuir o tempo de resposta aos efeitos causados pelas alterações ambientais ocorridas na superfície terrestre, como eventos de extremos hidrológicos (secas e enchentes), de queimadas e desmatamentos”.
O conhecimento de José Galdino de Oliveira Júnior acerca de geotecnologias nos levou a indagá-lo sobre as queimadas na Caatinga. Graduado em Engenharia Agrícola e Ambiental pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), onde também realizou o mestrado, atualmente desenvolve o doutorado em Engenharia Agrícola pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Nessa trajetória, ele tem feito uso de técnicas e ferramentas geotecnológicas para entender as alterações ambientais no semiárido.
Nascido em Vitória de Santo Antão, interior de Pernambuco, desde cedo José Galdino construiu uma relação afetiva com a Caatinga por meio das canções de Luiz Gonzaga, que lhe apresentou um sertão musicado e multicolorido, ao mesmo tempo castigado por ações humanas e intempéries naturais, clamando, assim, por olhares sensíveis e atentos à sua preservação. José Galdino ouviu o chamado do Rei do Baião e foi buscar no silencioso espaço sideral, onde moram os satélites, as imagens para inferir conhecimento e elaborar suas contribuições acerca da compreensão do semiárido. Sabemos que no atual período do ano, entre outubro e novembro, as queimadas tendem a aumentar nos domínios caatingueiros. Neste papo, José Galdino nos apresenta o seu de olhar para a imensidão da Caatinga e aponta para formas de prevenir queimadas mediadas pelas geotecnologias.
Associação Caatinga | Como surgiu seu interesse por estudar mudanças ambientais no semiárido?
José Galdino de Oliveira Júnior | Durante a minha graduação, tive o meu primeiro contato com o bioma Caatinga profissionalmente, através de um projeto de iniciação científica em que estava envolvido. Porém, já desde a minha infância, achava impressionante a fauna e flora da região do semiárido brasileiro. Com tão pouco acesso à água durante o ano (normalmente o regime anual de chuvas do semiárido é irregular, como a maioria das chuvas ocorrentes somente entre os quatro primeiros meses do ano), é notável o tamanho da biodiversidade endêmica e ainda presente na Caatinga. E devido a esses fatos, aproveitei ao máximo a oportunidade que me apareceu. Através de minhas pesquisas científicas, pude me debruçar para estudar e entender melhor esse bioma e as principais causas de suas variações ambientais sazonais.
AC | As queimadas têm sido uma das principais formas de destruição de florestas. Atualmente, como você avalia esse problema na Caatinga?
JG | É um problema muito grave, visto que a Caatinga vem sendo degradada discriminadamente para o avanço das atividades agropecuárias, desde o período colonial do país. E, devido à sua praticidade de uso, as queimadas são utilizadas comumente como uma das principais formas de preparo do solo nessa região. Contudo, as consequências desse método podem ser muito agressivas ao meio ambiente, pois o fogo acaba deteriorando potencialmente o equilíbrio ecossistêmico do local quando não utilizado de forma correta. A extinção da matéria orgânica presente no solo, a partir do processo de combustão, acaba gerando diversos problemas ambientais como diminuição da microbiota do solo, aumento da erosão do solo, aumento da amplitude térmica diária do local, diminuição da ciclagem de nutrientes, entre outros. Esses problemas acarretam, consequentemente, a perda da capacidade de produtividade do solo.
AC | As ações antrópicas são as principais razões da existência de queimadas ou há agravantes climáticos que estão além dessas ações?
JG | A ação antrópica é sim o principal fator causador de queimadas. Porém, fatores climáticos também podem agravar ainda mais a situação. Por exemplo, em ambientes pouco úmidos ou secos e com grande presença de material vegetal de fácil combustão (como é o caso da Caatinga), o fogo tende a se alastrar com maior facilidade. E, aliada a isso, a velocidade do vento também pode dificultar ainda mais o controle de um evento de queimada, causando uma variação no comportamento e distribuição espacial das chamas.
AC | Em seu estudo sobre o semiárido brasileiro, você destaca geotecnologias como meios eficientes para detectar e monitorar alterações ambientais. Poderia falar sobre essas tecnologias e como elas estão sendo usadas em pesquisas
acadêmicas?
JG | As geotecnologias, em específico as ligadas ao sensoriamento remoto e ao geoprocessamento, podem diminuir o tempo de resposta aos efeitos causados pelas alterações ambientais ocorridas na superfície terrestre, como eventos de extremos hidrológicos (secas e enchentes), de queimadas e desmatamentos, por exemplo. A partir de um monitoramento geoespacial eficiente das áreas afetadas, pode-se criar medidas de controle e remediação mais precisas e eficazes que visem à preservação dos ecossistemas naturais. Dentre as técnicas e ferramentas mais utilizadas atualmente no Brasil, têm-se: plataformas virtuais de geração e manipulação de dados geoespaciais (BDMEP, PRODES, MapBiomas, SATVeg, TerraClass, TerraBrasilis, Google Earth Engine), sistemas de monitoramento em tempo real (BD Queimadas, DETER), metodologias baseadas na aplicação de algoritmos de inteligência artificial (Machine Learning e Deep Learning) etc. Alguns dos principais órgãos públicos que realizam esses mapeamentos em nível nacional são o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (EMBRAPA) e o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET).
AC | O uso dessas tecnologias é algo recente? Os dados obtidos por meio delas já estão impactando, na prática, a proteção de florestas?
JG | De certa forma, sim. O uso de geotecnologias, de forma pública, para estudos ambientais, teve seus passos iniciais em meados da década 70, com o lançamento dos satélites da série Landsat. Contudo, nas últimas décadas, com os diversos avanços tecnológicos, podemos hoje realizar diferentes tipos de análise referentes à temática de mudança de uso e cobertura da terra, principalmente com o emprego das chamadas “séries temporais de imagens de satélites”.
AC | A propósito, softwares de fácil acesso, que apresentam imagens feitas por satélites, como o Google Earth, por exemplo, podem ajudar o cidadão comum, isto é, quem não é especializado em geoprocessamento, a compreender melhor a Caatinga e a colaborar com a proteção desse bioma? De quais formas?
JG | Para uma simples análise visual, como diferenciar alvos de fácil interpretação (áreas urbanas, áreas de vegetação nativa ou corpos hídricos), sim, isso é uma tarefa possível para um usuário comum. Contudo, sem um embasamento teórico mais profundo, o analista não teria como inferir conhecimento algum relevante sobre as
alterações ambientais ocorridas, por exemplo, na Caatinga, devido principalmente à complexidade de seus extratos vegetais.
AC | Na sua pesquisa de mestrado, você estudou mudanças ambientais entre 2001 e 2021 ocorridas em cinco municípios de Pernambuco (Belém do São Francisco, Cabrobó, Carnaubeira da Penha, Floresta e Itacuruba). Quais foram as principais alterações? E, de modo geral, como está a situação da Caatinga nessa região?
JG | Estes municípios estão localizados em uma região do semiárido brasileiro que vem sofrendo ao longo dos anos com constantes e ininterruptas alterações ambientais. Isso ocorreu devido, principalmente, à ação antrópica e a fatores ambientais e, por isso, é denominada cientificamente como um “núcleo de desertificação”. Em nossos estudos descobrimos que essas alterações ambientais estavam relacionadas diretamente a ocorrências de eventos de secas extremas na região. Também detectamos que essas alterações ambientais nos últimos 21 anos causaram uma perda de aproximadamente 5,93% (508 km 2 ou 5.080 ha) da cobertura vegetal nativa da nossa área de estudo (ou seja, uma área igual a quase 5 mil campos de futebol).
AC | Em seu ponto de vista, quando pensamos na Caatinga, especialmente nos espaços que são foco de seus estudos, quais ações podem ser tomadas contra as queimadas?
JG | Levando-se em consideração que a maioria dos focos de queimadas que afetam as paisagens naturais são provocados pela ação antrópica desmedida (em torno de 95% dos casos), torna-se evidente um cumprimento de penalidades mais efetivo dos órgãos públicos contra tais atos. Não podemos legalizar tão facilmente tais crimes ambientais e, para isso, a fiscalização deve ser uma tarefa contínua e conjunta. Pois basta só uma faísca para destruir um ecossistema inteiro, porém, levarão muitos anos para que ocorra pelo menos a possibilidade de recuperação parcial do local degradado. Fica aí uma reflexão muito importante para todos nós.
AC | Para finalizar, gostaria que falasse um pouco sobre sua relação com a Caatinga. Além da sua atuação profissional, existe uma vivencia afetiva com esse bioma?
JG | Sim, com certeza! Ah, que saudades daquela época! Bem, muito da minha curiosidade sobre as características da biodiversidade da Caatinga foram apresentadas a mim através das canções do saudoso “Rei do Baião” (Luiz Gonzaga). Durante a minha infância, eu ouvia bastante os programas de rádio da minha cidade natal (Vitória de Santo Antão) e sempre me admirava como “O Rei” transmitia tais belezas naturais através das suas letras e musicalidade. Por isso que até hoje sou um fã convicto deste grande artista da nossa querida MPB – Música Popular Brasileira.
Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.