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“Datas. Mas o que são datas?” A esta pergunta, feita pelo crítico literário Alfredo Bosi, segue uma resposta: “Datas são pontas de icebergs”. E como ponta de iceberg, cada data tem submersa a ela infinidades de ações, movimentos, experiências e símbolos dos quais só vêm à luz uma pequena parcela de seu verdadeiro significado. 28 de abril é a data em que comemoramos o Dia Nacional da Caatinga. Mas o que dizer, em um só dia, sobre a infinidade de significados da Caatinga? Como conjugar, em uma única comemoração anual, os trabalhos feitos duramente, a cada dia, contra a degradação ambiental e a favor da conservação desse bioma tão importante e, ao mesmo tempo, tão negligenciado?

Através da ponta do iceberg, que é esta data comemorativa, podemos iluminar o que está submerso, isto é, a gigantesca base de sustentação que impede o bioma de ruir, o sustenta, o conversa e o transforma numa beleza multicolorida que avança sobre os nossos olhos, seja percorrendo as veredas da Serra das Almas ou visualizando as fascinantes imagens publicadas em redes sociais.

Um trabalho que se desdobra cotidianamente para a proteção e divulgação desse bioma único no mundo é sem dúvida feito pela Associação Caatinga. Desde 1998, essa organização da sociedade civil vem atuando sem fins lucrativos na proteção da Caatinga e no fomento ao desenvolvimento local sustentável. Com presença no Ceará e no Piauí, é responsável pela administração da Reserva Natural Serra das Almas. Mas também irradia sua atividade para outros territórios, agindo diretamente em parceria com as comunidades caatingueiras e divulgando conhecimento técnico e científico através da internet.

Para abordar algumas das atividades promovidas pela Associação Caatinga, conversamos com a bióloga Marília Nascimento, mestre em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Estadual do Ceará, e que há anos tem atuado nessa Associação. Neste papo, ela destaca que “a principal missão da educação ambiental na Caatinga é sensibilizar as pessoas para uma convivência mais harmônica com a natureza e divulgar as potencialidades desse ambiente”, e diz ainda que “o reconhecimento da Caatinga como Patrimônio Nacional é fundamental para fortalecer as iniciativas de conservação desenvolvidas e estimular o surgimento de maior fomento em prol da preservação da mata branca, como também é chamada”.

Esta impressionante floresta, a “mata branca” na compreensão indígena, está sendo redescoberta todos os dias por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento acadêmico, e sendo vivificada pelas ações promovidas pelo terceiro setor, como é o caso da Associação Caatinga. E, nesse sentido, as palavras de Marília Nascimento nos trazem esperança. Mas não é uma esperança abstrata lançada ao futuro. É, na verdade, uma esperança concreta, enraizada no presente, exercitada de abril a abril no chão da Caatinga. É a esperança dos que se movem por acreditar na resistência da biodiversidade e na teimosia do caatingueiro que não abre mão da sua relação com a terra, que teima e resiste na imensidão cotidiana que está por baixo do feixe de luz representado nessa ponta de iceberg – este 28 de abril. Que se celebre a Caatinga todos os dias, como faz a Associação Caatinga.

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Além de bióloga e integrante da Associação Caatinga, Marília é Mestre em Recursos Naturais pela Universidade Estadual do Ceará e tem MBA em Gestão de Projetos pela Universidade de São Paulo.

ENTREVISTA:

Associação Caatinga | No Dia Nacional da Caatinga, que ocorre neste 28 de abril, celebramos também as iniciativas de conservação desse bioma. Nesse cenário, qual a importância da Associação Caatinga?

Marília Nascimento | A Associação Caatinga atua no desenvolvimento de iniciativas voltadas para a conservação da Caatinga com um grande diferencial que é o envolvimento das comunidades sertanejas nesse processo de conservação e valorização do nosso bioma. Esse é um trabalho de grande relevância e impacto, pois conecta o ambiental com o social, gerando benefícios para todos os atores envolvidos e para o meio ambiente.

AC | Nos trabalhos voltados à Educação Ambiental, poderia destacar o que vem sendo feito? E como isso tem ajudado a sensibilizar olhares mais plurais e sensíveis em relação às potencialidades da Caatinga?

MN | A principal missão da educação ambiental na Caatinga é sensibilizar as pessoas para uma convivência mais harmônica com a natureza e divulgar as potencialidades desse ambiente, convidando a todos e todas a lançarem um novo olhar sobre esse bioma, combatendo os estereótipos que foram difundidos por muito tempo, incentivando o orgulho e valorização da cultura local, dos saberes tradicionais e da nossa floresta.

Promover uma educação contextualizada ao semiárido é fundamental para formar cidadãos conscientes, críticos, protagonistas na transformação da realidade e com possibilidades de caminhos prósperos a seguir para o bem viver no semiárido.

Para isso, a AC realiza ações educativas relacionando os diversos meios que circundam o ser humano (ambiental, social e cultural), com enfoque em diversos públicos, como primeira infância, jovens, mulheres, agricultoras(es), produtores(as) e trabalhadores(as) rurais, com atividades que vão desde atividade lúdicas e culturais até formações com potencial para geração de renda, autonomia e empoderamento das comunidades sertanejas.

AC | A Associação oferece diversos cursos e tecnologias sustentáveis, aplicados diretamente aos caatingueiros ou disponibilizando os materiais por meio de cartilhas e vídeos publicados online. Desses cursos e tecnologias, quais têm tido um efeito mais duradouro e transformador na convivência com o bioma?

MN | As tecnologias sustentáveis difundidas pela AC buscam otimizar o uso dos recursos escassos na Caatinga, como a água, potencializar o uso dos recursos que são abundantes, como luz solar e resíduos orgânicos, e contribuir para a expansão dos recursos naturais da fauna e flora, como abelhas e sementes, recuperando o equilíbrio natural de ambientes degradados. Essas ferramentas de convivência com o semiárido possuem alto impacto na qualidade de vida das populações com maior destaque, no que concerne a transformação de realidades e garantia dos direitos humanos, àquelas relacionadas ao abastecimento hídrico, como as cisternas e sistema de reuso de água (bioágua), e àquelas relacionadas à produção de alimentos e geração de renda, como os quintais produtivos, canteiros biosépticos, fogões ecoeficientes, compostagem e cultivo de abelha nativa (meliponicultura). A difusão dessas tecnologias e apropriação das metodologias por parte das comunidades sertanejas é um caminho promissor para a conservação da Caatinga.

AC | Diante das tecnologias sustentáveis, dos diversos cursos de treinamento e de divulgação do conhecimento feitos pela Associação Caatinga, como tem sido a recepção e o envolvimento da população atingida?  

MN | Com o acentuamento dos efeitos das mudanças climáticas que, no caso do semiárido, se manifesta especialmente na alteração no regime de chuvas, secas severas, perda de biodiversidade, aumento das temperaturas e das queimadas naturais e redução da produtividade dos solos, a população tem traçado estratégias relacionadas à resiliência climática bem como aderido às inovações voltadas para a convivência sustentável com o meio natural. O engajamento da sociedade na tentativa de reverter esse quadro de degradação ambiental é fundamental para conseguirmos uma Caatinga conservada, além da garantia dos serviços ecossistêmicos que são fundamentais para a vida humana no planeta.

AC | Os trabalhos da Associação Caatinga atingem diretamente grande parte dos territórios do Ceará e do Piauí. Para além desses lugares, qual o alcance da Associação no restante do Nordeste e no Brasil de modo geral?

MN | Além dos estados mencionados, a AC tem atuação pontual em outros estados do nordeste, como o Rio Grande Norte e Maranhão.

Além disso, por meio dos materiais educativos disponibilizados gratuitamente em nosso site e das mídias digitais, como Instagram e Facebook, é possível difundir as belezas do nosso bioma para outras regiões do Brasil e do mundo, com alguns materiais adaptados também para o inglês.

Essa visibilidade do bioma Caatinga nos âmbitos nacional e internacional é fundamental para fortalecer os esforços de conservação desempenhado pela Associação Caatinga e outras instituições de mesmo cunho, além de atrair mais apoio e fomento para essas iniciativas, que se justificam pelo respeito à vida e pelos benefícios gerados para todos e todas.

AC | E quais são os obstáculos que a Associação ainda enfrenta para desenvolver um trabalho mais amplo e efetivo de conservação e uso sustentável da Caatinga?

MN | Os desafios para conservação da Caatinga perpassam diversas searas que vão desde a devastação do bioma por desmatamento, agropecuária e introdução de monoculturas até os efeitos das mudanças climáticas que ameaçam o semiárido com altas temperaturas e com o recente surgimento de zonas áridas, o que compromete todo o equilíbrio ecossistêmico que, em contrapartida, pode ser proporcionado e estabelecido pela floresta em pé. Ademais, também se encontram desafios relacionados às políticas públicas e iniciativas de fomento voltadas para à conservação do único bioma exclusivamente brasileiro. Nesse sentido, o reconhecimento da Caatinga como Patrimônio Nacional é fundamental para fortalecer as iniciativas de conservação desenvolvidas e estimular o surgimento de maior fomento em prol da preservação da mata branca, como também é chamada.

Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.