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Há uma passagem do livro O amor das sombras (2015), do escritor cearense Ronaldo Correia de Brito, em que notamos o poder destrutivo do fogo quando se espalha na vegetação: “Avistamos o fogo de longe e imaginamos Nero incendiando Roma. A terra esquenta, sobem nuvens escuras ao céu, cai fuligem sobre ruas, jardins e casas”. Esse trecho refere-se à queima de canaviais em Pernambuco, mas serve também para dimensionar a sensação de perceber a propagação de um incêndio florestal. Se a fuligem que cai sobre ruas, jardins e casas já causa angústia, imagine-se o que acontece com as variadas formas de vida da floresta em chamas.

O engenheiro florestal Pompeu Paes Guimarães conhece bem a dimensão desse problema e procura estabelecer um olhar técnico para abordá-lo. Formado pela Universidade Federal do Espírito Santo, onde também realizou o mestrado, ele expandiu sua trajetória ao escolher a Universidade Feral do Paraná para realizar o doutorado. Desde então, busca relacionar suas pesquisas sobre rendimento energético e gestão do abastecimento florestal com o desenvolvimento econômico, ambiental e social. Do Sul para o Nordeste, seu campo de pesquisa e atuação ampliou-se quando passou a trabalhar como professor na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), localizada em Mossoró, no Rio Grande do Norte.

Em Mossoró predomina a Caatinga, bioma que abarca quase todo o estado em que esse município está inserido. Em 2023, até meados de outubro, o Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) registrou, por meio de satélites de referência, 289 focos de incêndios no Rio Grande do Norte, o que revela um aumento de 52% em relação ao ano anterior. No Centro de Ciências Agrárias da UFERSA, Pompeu Guimarães ministra a disciplina Incêndios Florestais, na qual discute o problema em larga escala, a começar pela definição do próprio fogo. Essa definição é necessária porque o fogo não é autoevidente. Sua existência é determinada pelo material combustível, de modo que é preciso de conhecimentos e técnicas para entender seu comportamento e controlar sua propagação, evitando, assim, cenas assombrosas como a descrita por Correia de Brito.

Neste “papo caatingueiro”, Pompeu Guimarães apresenta sua visão sobre incêndios florestais, sublinhando a diferença em relação às “queimadas controladas”. Trata-se de assunto dos mais urgentes, uma vez que, em suas palavras, os incêndios costumam aumentar “no segundo semestre, principalmente de setembro a novembro”.

Associação Caatinga | A sua trajetória na área da Engenharia Florestal começou no Espírito Santo, onde fez a graduação e o mestrado. Depois seguiu para o Paraná, onde realizou o doutorado. Desde 2013, você trabalha como professor na UFERSA, em Mossoró (RN), região em que predomina a Caatinga. De que maneira a mudança para o semiárido nordestino impactou suas pesquisas?

Pompeu Paes Guimarães | Durante minha formação sempre me interessei em cadeias produtivas. Enxergava a Engenharia Florestal como forma de produção e agregação de valor aos seus produtos, tentando envolver o desenvolvimento econômico, ambiental e social. Na Caatinga as atividades são planejadas para envolvimentos de muitas pessoas e várias cadeias produtivas, agricultura, animais, produto madeireiro e não madeireiro. O semiárido tem muitas riquezas e potencialidades, que precisam ser estudadas para melhorias em suas formas de produção, como a extração de palha da carnaúba para produção de artesanatos, pó e cera.

AC | Na UFERSA, você ministra a disciplina “Incêndios Florestais” para graduandos em Engenharia Florestal. Poderia falar um pouco sobre os objetivos dessa disciplina? Ela tem um foco mais geral ou se concentra nos problemas da região em que a universidade está inserida?

PPG | Na disciplina de Incêndios Florestais entendemos o que é o fogo e suas formas de propagação. O que caracteriza um incêndio florestal é ele ocorrer no meio rural e fugir do controle. Então sempre os incêndios florestais serão danosos e trarão prejuízos como perda de áreas produtivas, remoção de florestas nativas, morte de animais entre outros. Mas o fogo pode ser utilizado de forma positiva, na forma de queimada controlada, sendo uma técnica muito utilizada pelos produtores para preparo de suas áreas para novos plantios, e que normalmente é uma técnica negligenciada, onde na verdade deveria ser ensinada para utilização de forma responsável e legalizada.

A disciplina aborda as diferenças entre incêndios florestais e queimadas controladas, estatísticas dos incêndios florestais brasileiros, o comportamento do fogo, uso do fogo no manejo florestal, prevenção aos incêndios florestais, combate aos incêndios florestais e perícia. Assistimos documentários e vídeos sobre incêndios florestais em diversos biomas brasileiros e fora do Brasil, discutimos suas causas principais, formas de controle e consequências.

AC | A propósito, as queimadas têm sido uma das principais formas de destruição de florestas. Atualmente, como você avalia esse problema na Caatinga?

PPG | Um primeiro ponto que precisa ser esclarecido é que o Incêndio Florestal é todo fogo sem controle que incide sobre qualquer forma de vegetação; já a queimada controlada é uma prática florestal ou agropastoril onde o fogo é utilizado de forma controlada, atuando como um fator de produção. Então os incêndios florestais tem impactos negativos aos ecossistemas. Em relação aos incêndios da região existem algumas particularidades, uma região quente o ano todo, onde os problemas com incêndios florestais se concentram no segundo semestre, época mais seca, com umidade relativa mais baixa, de modo que, junto ao material combustível presente nas florestas e oxigênio inserido pelos ventos, formam um prato cheio para ocorrência de incêndios florestais. As preocupações com os incêndios florestais devem ser constantes, e não somente no momento em que acontecem no segundo semestre. Os recursos devem ser destinados a campanhas preventivas de conscientização sobre o uso do fogo responsável e criminalização de incêndios florestais, além de envolver técnicas de manejo do material combustível como uma forma de conter ou reduzir a intensidade do fogo de futuros incêndios e facilitar sua contenção e combate. Ações simples como manutenção dos aceiros nos períodos críticos ajudam a reduzir a velocidade do fogo e, em menores intensidades, facilitam seu combate pelos brigadistas.

AC | As ações antrópicas são as principais causas dos incêndios ou há agravantes climáticos que estão além dessas ações?

PPG | Para que o incêndio aconteça é necessário que haja combustível, oxigênio, calor e a reação em cadeia para propagação do fogo. No segundo semestre, principalmente de setembro a novembro, período seco e umidade relativa do ar mais baixa, fica propício para aumento de incêndios florestais. 90% dos incêndios florestais são causados pelo ser humano, de forma intencional ou negligenciada, e os outros 10% causados por fontes naturais como raios. As estatísticas dos incêndios florestais são importantes para dar embasamento sobre quais áreas ocorrem os incêndios, em quais épocas do ano, quais suas consequências quanto à área queimada e o seu tamanho, e quais as causas principais. Conhecendo as causas, fica fácil promover e orientar campanhas educativas para redução das mesmas.

AC | Quando comparamos os diferentes biomas brasileiros, os problemas que envolvem incêndios são semelhantes ou há diferenças?

PPG | Cada região tem suas particularidades, condições climáticas diferentes, regime hídricos, topografia, tipo de vegetação e, com isso, ecossistemas diferentes. Existem ecossistemas que são sensíveis ao fogo, como a floresta da Amazônica e Mata Atlântica. As florestas desses ecossistemas não desenvolveram adaptações de resistência ao fogo, por isso quando acontece o incêndio florestal a mortalidade é alta. Os ecossistemas em que o fogo exerce pequena influência, como desertos, tundra e a Caatinga, são considerados ecossistemas independentes ao fogo, que são ecossistemas muito frios, úmidos ou secos para queimar. Os ecossistemas dependentes do fogo, como a savana africana e o cerrado brasileiro, se o regime de fogo for alterado, ocorre perdas de habitats e espécies, pois desenvolveram adaptações para responder de forma positiva ao fogo. E por último, os ecossistemas influenciados pelo fogo, como pantanal, que está em uma zona de transição entre ecossistemas dependentes e sensíveis ao fogo.

AC | E quanto aos impactos, há biomas ou regiões florestais que sofrem mais que outros(as)? Os avanços tecnológicos têm ajudado a compreender melhor esse problema e a estabelecer quadros comparativos?

PPG | Todo processo de combate a incêndios florestais tem sucesso quando a detecção se torna a mais rápido possível. Quando o incêndio é percebido e rapidamente uma equipe de brigadistas chega à região, poucas pessoas podem conseguir debelar o incêndio. Mas, a partir do momento em que a detecção é demorada ou quando a central de brigadistas se encontra distante do local de combate, o pequeno foco se propaga e ganha maiores dimensões, precisando de mais pessoas e equipamentos para sua supressão.

Algumas regiões são melhores preparadas para futuros incêndios por conhecer suas ocorrências principais, período do ano, causas principais, de forma que já espera pelo incêndio no momento certo com toda tecnologia e pessoas necessárias para seu combate. A deteção dos focos de calor ou focos ativos por satélites tem ajudado na compreensão de áreas com prováveis incêndios, bem como a análise das consequências que o incêndio florestal causou.

AC | Na UFERSA, você trabalhou no projeto de pesquisa “Índice de riscos de incêndios florestais na Caatinga e proposição de metodologia de detecção de prováveis causas”. Poderia falar um pouco sobre a região estudada e os resultados obtidos?

PPG | Neste projeto, junto a meus alunos, testamos o índice de perigo de incêndios florestais para a fórmula de Monte Alegre Alterado. Os índices de perigo de incêndios florestais utilizam de variáveis de ocorrência e propagação para conseguir responder se em determinada época do ano terá uma maior ou menor probabilidade de ocorrência de incêndios florestais. Este índice é brasileiro e foi aplicado a regiões no Paraná. A ideia deste trabalho era aplicar este mesmo índice em regiões do Rio Grande do Norte, Natal e Caicó, no período de 2010 a 2014. Vale salientar que este índice levou em consideração a umidade relativa do ar medida às 13h, velocidade média dos ventos e precipitação pluviométrica. Tendo nos meses de agosto a novembro o período com maior probabilidade de ocorrência de incêndios florestais.

AC | As pesquisas sobre prevenção e combate a incêndios na área de Engenharia e Ciências Florestais têm avançado? Há avanços desses estudos em relação à Caatinga ou ainda há muito por fazer?

PPG | Aqui, na Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Centro de Ciências Agrárias, Departamento de Ciências Agronômicas e Florestais, mais especificamente em monografias para obtenção do título de Engenheiro(a) Florestal, o tema incêndios florestais no semiárido foi abordado em dois momentos. No primeiro, feito por Bruno Menezes Nogueira Brito, em 2021, foram correlacionados os focos ativos com as variáveis meteorológicas para o Rio Grande do Norte no período de 1999 a 2019, tendo uma correlação positiva e crescente entre focos ativos e temperatura, e uma correlação negativa entre o aumento dos focos ativos e velocidade do vento, a precipitação e a umidade relativa.

Na segunda monografia, autoria de Luciélia Lacerda da Silva, o objetivo foi analisar, no Parque Ecológico Professor Maurício de Oliveira, a relação entre suas espécies e biomassa, logo, material combustível para futuros incêndios florestais. E, mesmo assim, ainda se tem um caminho longo a percorrer, muito por se descobrir. Não podemos negligenciar que os incêndios florestais trazem muitos prejuízos, e que as queimadas controladas continuarão a ser utilizadas pelos produtores, então nos cabe ensinar a técnica correta, o momento correto e legal para se utilizar da forma mais eficiente e segura. Apenas criminalizar o uso do fogo não tem sido a melhor forma para reduzir o número e intensidade dos incêndios florestais, é necessário investir em medidas de educação ambiental para utilização consciente do fogo e manejo do material combustível.

AC | Tomando como base sua experiência nos estudos florestais, quando pensamos na Caatinga, quais ações podem ser tomadas contra os incêndios?

PPG | Algumas medidas são interessantes no intuito de reduzir as ocorrências de incêndios florestais: campanhas educativas que ensinem o que é o fogo e como ele se propaga, as técnicas corretas e legais para utilização de queimadas controladas; cursos para manejo do material combustível que ensinem as técnicas de queimada controlada, como proceder e que o uso do fogo só é permito pelos órgãos ambientais quando precedidos dos planos de queima, onde estará descrito a área a ser queimada, comportamento do fogo esperado, época correta para o mesmo, entre outros.

Os aceiros são áreas desprovidas de vegetação (sem material combustível) localizados no interior dos talhões e nas periferias, são primordiais para evitar que o fogo vindo dos vizinhos se torne um incêndio florestal em nossas áreas, e por isso deve ser pensando em toda propriedade e estar em bom estado de conservação nas épocas de maior probabilidade de ocorrência de incêndios florestais. Em relação ao combate propriamente dito, um maior número de brigadistas deve ser treinado para comporem uma lista nos municípios e serem chamados para atuar em épocas mais propícias aos incêndios florestais. Nas épocas não propícias poderiam atuar em campanhas educativas e treinamentos de futuros brigadistas. O pagamento por serviços ambientais pode ser uma prática muito benéfica no meio rural, por possibilitar remunerar produtores que mantenham suas florestas, controlem seus materiais combustíveis, preservem seus aceiros e açudes.

Texto escrito por Eudes Guimarães, integrante da Liga da Caatinga, o programa de voluntariado da Associação Caatinga.