Skip to main content

Há exatos vinte anos, uma Instrução Normativa (IN) do Ministério do Meio Ambiente reconhecia duas aves da Caatinga na lista da fauna brasileira ameaçada de extinção. Uma delas era o soldadinho-do-araripe Antilophia bokermanni, um pássaro formalmente descrito para a ciência menos de cinco anos antes da publicação da referida IN N°03. Apesar da resposta rápida, a União Internacional para Conservação da Natureza já havia reconhecido essa espécie como ameaçada de extinção no ano 2000. Esse animal representa a diversidade de ambientes da Caatinga, pois é exclusivo das matas úmidas do Cariri Cearense. Sua força simbólica é significativa e tem sido usada até mesmo no esforço de reconhecimento da Chapada do Araripe como patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO.

A outra ave que foi entendida de forma pioneira como ameaçada era o cara-suja, na época denominado Pyrrhura anaca (atualmente, Pyrrhura griseipectus). Este periquito figurou na IN N°03 antes mesmo da lista global, tendo esse gesto sido decisivo para sua sobrevivência. Na época, foi considerado Criticamente em Perigo de extinção, quando haviam registros recentes apenas na serra de Baturité/CE, onde hoje estima-se que na época existiam menos de cem exemplares. Desde então, foi incluído no Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação das aves da Caatinga* e seu grau de ameaça vem sendo reduzido nas listas subsequentes. Essa melhora se deve a um programa de manejo reprodutivo em ninhos artificiais, conduzido pelo Projeto Cara-suja, da ONG cearense Aquasis.

Além de ter sido descoberto noutros lugares, a população do cara-suja aumentou em mais de dez vezes também graças à repressão ao tráfico ilegal e simpatia que obteve pela educação ambiental, bem como pela citada assistência reprodutiva. A IN N°03 foi assinada pela então ministra Marina Silva, que após duas décadas está de volta ao mesmo posto. O exemplo de sucesso com o cara-suja tem a oportunidade ser replicado para mais espécies noutras esferas públicas, como pelo Governo do Estado do Ceará, que conseguiu andar de mãos dadas com a Ciência em tempos de negacionismo, quando publicou sua primeira lista de espécies ameaçadas. Agora alinhado com o Governo Federal, a política cearense tem como expurgar práticas clientelistas herdadas dos tempos dos coronéis e ainda presentes.

Entre os passos esperados para 2023, aguarda-se a elaboração do Plano de Ação Estadual para o território do Araripe, coincidindo oportunamente com o reconhecimento internacional desta área como patrimônio cultural da humanidade. Em âmbito nacional, o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental Chapada do Araripe finalmente virá a lume, concretizando a gestão em mosaico desta biorregião historicamente encarada como divisa entre os estados do Piauí, Pernambuco e Ceará, mas que, na verdade, é o berço onde os três formam um só – o mesmo ventre de onde nasceram Padre Cícero, Luís Gonzaga e o soldadinho-do-araripe, devendo receber de volta, em alguns anos, o cara-suja e outras aves que dali foram extintas.

* Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção é um instrumento de gestão e de políticas públicas, elaborado conjuntamente com a sociedade, que identifica e orienta as ações prioritárias para combater as ameaças que colocam em risco as espécies e seus ambientes naturais. O PAN Aves da Caatinga completou 10 anos de planejamento e entra agora em seu terceiro ciclo de gestão, recebendo ações do concluído PAN do soldadinho-do-araripe, originado a partir de documentos de gestão datados de 2004. O PAN estabelece estratégias prioritárias de conservação para 39 táxons de aves consideradas ameaçadas de extinção e abrange uma grande rede de colaboradores, como universidades, órgãos de meio ambiente e organizações não governamentais, como a Associação Caatinga.

Texto por: Weber Girão & Fábio Nunes, biólogos da Aquasis.